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Políticas de vida e morte: necropolítica e os corpos das mulheres indígenas

Atualizado: 10 de mar. de 2021

por Maria Eduarda Frota Jorge João¹


Desde a colonização, os povos indígenas, especialmente as mulheres, foram expostos a circunstâncias de subjetivação e objetificação que, ao longo dos séculos, foram responsáveis por marginalizar e silenciar esses corpos conforme o avanço dos colonizadores no processo de construção do Estado-Nação. Esses colonizadores também definiram, desde 1500, a narrativa que seria passada as outras gerações e quais nomes poderiam viver ou morrer na história, tudo isso como parte de um grande plano de genocídio e de domínio ocidental. O filósofo Achille Mbembe, baseado nas ideias de biopolítica e soberania foucaultiana, alcunha acontecimentos como estes com o termo necropolítica. Este tipo de política seria, em síntese, o contrário da biopolítica. Enquanto uma se caracteriza pelas políticas que mantém a vida biológica, a outra parte do princípio do controle político que o Estado exerce sobre a morte e quais política ele usa para definir quem pode viver ou não. Uma forma de soberania que se assenta na “instrumentalização generalizada da existência humana e na destruição material de corpos humanos e populações.” (Mbembe, 2003, p. 14). Essa política de morte atua de forma sistêmica e pontual, burocratizando e institucionalizando a máxima do biopoder; o direito de “deixar morrer”. Entretanto, nem todos os corpos são matáveis, pois para isso eles precisam se vulneráveis e estarem a todo tempo expostos a essa condição. Pode-se então dialogar também com a autora Judith Butler, que além de trabalhar com questões de feminismo, identidade e gênero volta também seu pensamento as políticas que envolvem os corpos físicos feminismos, racializados, lgbtq+ e afins e a violência a que são expostos. Em sua obra “Bodies That Matter”, a autoradisserta a importância do corpo para formular questões como a humanização ou desumanização que definem quais vidas merecem ser vividas e quais mortes merecem ser entendidas como perda para a sociedade ou não. Também em seus ensaios “Explicação e isenção, ou o que podemos ouvir” e “A acusação de antissemitismo: judeus, Israel e os riscos da crítica pública” discute sobre o processo de desumanização ao qual alguns corpos são submetidos para validar a violência institucional que sofrem, assim como as questão em volta do valor atribuído a vida perdida nesses processos. Em mais um ensaio, “Vida precária”, Butler se utiliza da ideia de dissociação da sociedade para com os indivíduos que são alvos das políticas de morte, uma vez que esse distanciamento do “eu” daquele que esta sofrendo a violência é mais uma forma de deslegitimar a violência a qual estes corpos estão sendo expostos. E em sua obra mais recente, “Sin Miedo – Formas de Resistencia a la Violencia de Hoy” a autora faz uma colocação que traduz de forma simples os conceitos apresentados em seus ensaios anteriores: "Hoje eu gostaria de falar da necessidade de reconhecimento público dessas perdas que continuam desconhecidas e sem chorar. E, para fazê-lo, começarei com uma pergunta: em que circunstâncias é possível lamentar uma vida perdida? De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público? Quais são essas vidas que, se perdidas, não serão consideradas em absoluto uma perda? É possível que algumas de nossas vidas sejam consideradas choráveis e outras não? Faço essas perguntas difíceis e perturbadoras porque eu, como vocês, me oponho à morte violenta; à morte por meio da violência humana; à morte resultante de ações humanas, institucionais ou políticas; à morte provocada por uma negligência sistêmica por parte dos estados ou por modos de governança internacionais. (...) No entanto, se reconhecermos apenas a certas vidas o direito de aspirar a uma vida vivível; se só choramos quando são essas as vidas que desaparecem por obra da violência, então devemos nos perguntar por que choramos essas vidas e outras não. Parte do que nossa dor diz ―se a dor falasse―, parte do que essa dor implica, é que as vidas que foram perdidas deveriam ter tido a oportunidade de viver, de aspirar a uma vida que não fosse de sofrimento contínuo e deslocamento, mas uma vida vivível, uma vida que permitisse que uma pessoa amasse a vida que lhe foi dada viver. (BUTLER, 2020)." Portanto, entende-se em um mundo essencialmente material, em que o corpo é o instrumento de posicionamento do ser na sociedade, é necessário compreender como esse corpo é visto pelas políticas de Estado que possam vir a regula-lo e as motivações e consequências de todos os processos que o envolvem. No Brasil, é inegável que os corpos racializados foram ao longo da história os principais alvos de políticas de extermínio. Desde a chegada dos colonizadores, em que tanto os povos nativos quanto os povo africanos escravizados eram objeto de exploração e objetificação, até por exemplo, meados do século XIX e início do século XX quando o “movimento eugenia” foi um marco dentro da elite econômica do país, trazendo a ideologia do branqueamento e a ideia de, literalmente, exterminar corpos racializados e fora dos padrões eurocêntricos. E quando discutimos a invisibilização das mulheres indígenas no Brasil contemporâneo e em torno dessas políticas, precisa-se entender que a própria violação dos direitos coletivos, econômicos e socioculturais dos povos indígenas são a principal forma de violência estrutural contra essas mulheres. A concepção da humanidade em volta dos ideais europeus e iluministas fez com que, dentro da própria nação brasileiro, fossem estabelecidos estereótipos da animalização desses povos e especialmente dos corpos femininos. A herança colonizadora dentro de ideias como as índias promiscuas de Gilberto Freyre se perpetuam até hoje no imaginário coletivo da sociedade, que é resultado das crônicas feitas pelas lentes da misoginia cristã pregada pelos brancos da época, que condicionavam as mulheres índigenas a condição sexualizada, sem puder e moral, totalmente dissociado do mundo “civilizado”, que é justamente o molde de mundo em que vivemos hoje. Em vista disso, perpetua-se até hoje a ideia de que as mulheres nativas são incapazes de se posicionar criticamente ou até mesmo de existir para além da reprodução e do artesanato. E toda essa construção prejudicou a formação de uma alteridade que seria essencial para criar o contexto de inclusão dessas mulheres e seus povos dentro da sociedade, do Estado-Nação e todas as suas relatividades. Como pontua César Sanson, a falta de representatividade institucional; o fato de não terem suas demandas como movimento capitalizadas; os setores políticos guiados pela teleologia do progresso e pelo agronegócio e pecuária colonialistas entre outros fatores faz com que o racismo étnico sofrido por essa classe tenha uma oposição enfraquecida e consequentemente, que cresça com mais facilidade. A legitimação de políticas que vulnerabilizem corpos feminismo indígenas e consequentemente de políticas que exterminem esses corpos não encontram uma barreira estatal tão forte quantos outros movimentos, o que silencia e dificulta qualquer reinvindicação de direitos por parte dessas mulheres e mostra uma emergência de mais vozes índigenas ocupando posições de representatividade. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas publicado em 2010, as mulheres indígenas são os principais corpos afetados pela violência étnica contra os povos nativos não só em escala nacional, mas também internacional. A mesma fonte, indica que 1 em cada 3 mulheres indígenas são estupradas ao longo da vida. E em 2019, outro relatório intitulado “Violência contra os Povos Indígenas no Brasil” mostrou um aumento no caso de explorações ilegais de terras indígenas, com 111 casos registrados e um aumento de 20% no número de homicídios de pessoas nativas no país. O que os dados apontam são resultado de anos de silenciamento étnico de corpos que sofrem diariamente com violências estatais, tendo seu direito a vida tradicional e ligação ancestral constantemente negligenciados e atacados pela mais diversas instituições, que desconsideram esses povos e suas individualidades como parte do Estado-Nação e negam a importância destes e suas culturas na formação da nossa sociedade. Dentro das dinâmicas sociais de suas comunidades, em muitas etnias, as mulheres índigenas são vistas como guardiãs da cultura. Cada vez mais essas mulheres se tornam presentes na luta pelos direitos de sua etnia e nas interlocuções políticas da aldeia para com a sociedade não indígena. Sendo assim, para além de luta e resistência contra avanços de políticas de extermínio tanto do ser quanto do lócus, a representatividade feminina indígena dentro dos poderes é necessária para que as mulheres índigenas possam adaptar as políticas as especificidades e tradições de seus povos. Referências Bibliográficas:

FREIRE, Lucas. BUTLER, Judith. 2019. Vida precária: os poderes do luto e da violência. Trad. Andreas Lieber. Belo Horizonte: Autêntica. 189 pp. Mana, Rio de Janeiro , v. 26, n. 1, e261801, 2020.

MILANEZ, Felipe et al . Existência e Diferença: O Racismo Contra os Povos Indígenas. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro , v. 10, n. 3, p. 2161-2181, Sept. 2019.

MBEMBE, A. Necropolítica. Tenerife: Melusina, 2011.

LASMAR, C. Mulheres indígenas: representações. Revista Estudos Feministas 7(1-2):1-14, 1999.

SANSON, C. Por que o racismo contra indígenas é o maior de todos no Brasil?, Ihu.unisinos.br, 2020.

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