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Mulheres negras na Améfrica Ladina: o caso das brasileiras

por Juddy Garcez


No dia 20 de novembro celebramos o Dia da Consciência Negra no Brasil, data reconhecida há somente 20 anos e fruto da luta da movimentação negra no país. Antes de adentrar em um debate mais aprofundado sobre o tema, é necessário que eu faça uma breve explicação: a temática da consciência negra, ou mesmo da abolição da escravidão no país, sempre foi disputada. Inicialmente, a recuperação do valor e da contribuição da comunidade negra para o Brasil era feita no dia 13 de maio, data da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel. Contudo, assim como muitos outros marcos arbitrários, tal dia não representava a luta da população negra por sobrevivência e direitos. Aqui é importante relembrar o que tal data, de fato, significou:

Depois de sete anos de trabalho, o velho, o doente, o aleijado e o mutilado – aqueles que sobreviveram aos horrores da escravidão e não podiam continuar mantendo satisfatória capacidade produtiva – eram atirados à rua, à própria sorte, qual lixo humano indesejável; estes eram chamados de “africanos livres”. Não passava, a liberdade sob tais condições, de pura e simples forma de legalizado assassínio coletivo. As classes dirigentes e autoridades públicas praticavam a libertação dos escravos idosos, dos inválidos e dos enfermos incuráveis, sem lhes conceder qualquer recurso, apoio ao meio de subsistência. Em 1888, se repetiria o mesmo ato “libertador” que a história do Brasil registra com o nome de Abolição ou de Lei Áurea, aquilo que não passou de um assassinato em massa, ou seja, a multiplicação do crime, em menor escala, dos “africanos livres”. (Nascimento, 2016, p.79)

       Desse modo, e reconhecendo o problema representado pelo dia da Lei Áurea, graças a atuação de movimentos negros, em especial o Grupo Palmares, que desde 1970 participou ativamente de uma campanha contra o marco, que o dia 13 de maio é colocado em xeque. O dia 20 de novembro vem à tona, então, para representar a data atribuída à morte de Zumbi dos Palmares em 1695, uma das maiores lideranças negras no país (Gonçalves, 1997). Desse modo, após cerca de 30 anos de luta, tivemos a instauração do Dia da Consciência Negra no Brasil através da Lei n.º 10.639 de 9 de janeiro de 2003. A conquista é motivo de celebração. Contudo, não só isso. É preciso questionarmos: como pensar tal dia face às múltiplas violências que a população negra sofreu e ainda sofre? Quando todos os dias nos deparamos com o assassinato de jovens negras e negros pela política militarizada? Quando as balas perdidas encontram sempre corpos negros? Quando cargos políticos e de alta relevância são ocupados somente por pessoas brancas?

Nós, enquanto internacionalistas, temos uma horrível tendência de pensar tudo a partir do internacional. Aquele reino distante, objeto básico de toda e qualquer análise que fazemos. Entretanto, hoje convido você, leitora, a pensar esse espaço distante a partir do locais mais próximos, sejam eles nossas próprias vivências ou a sociedade brasileira de modo mais amplo. Gostaria de convidá-la, então, a pensar comigo a realidade das mulheres negras no Brasil, uma espaço dentro de um espaço que Lélia Gonzalez (1988b) chama de Améfrica Ladina. Nessa potente, ainda que breve, jornada, trago conceitos que acredito serem úteis para refletirmos sobre o dia da Consciência Negra e a problemática das mulheres negras brasileiras.

Antes de seguir adiante, esclareço o que Lélia (1988b) entende por Améfrica Ladina: como forma de contrapor termos como afroamericano ou africanoamericano, comumente associados aos negros estadunidenses, a autora propõe a ideia de amefricanos.

A AMÉRICA e como um todo (Sul, Central, Norte e Insular). Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus modelos yorubá, banto e ewe-fon. Em consequência, ela nos encaminha no sentido da construção de toda uma identidade étnica. (Gonzalez, 1988b, p.76)

Tendo em vista, então, o caráter compartilhado das experiência amefricanas que, embora detentoras de especificações que variam com base nas experiências históricas, sociais, culturais e econômicas de cada país, derivam de opressões em comum, pode ser útil partir dessa noção para discutirmos os locais que as mulheres negras ocupam na Améfrica Ladina, em especial no Brasil. Tal espaço, como já falamos em outros momentos, é um locus de subalternidade. Então, mais do que consciência, devemos quiçá falar sobre memória.

Baseando-se nos trabalhos de Freud e Lacan, a autora traz noções de consciência e memória. Certamente não estamos falando de consciência no mesmo sentido da data aqui pensada, mas é relevante trabalharmos esse jogo de palavras que variam sua significação a partir do ponto de partida. No caso da consciência, para Gonzalez (2020), ela pode ser entendida como “o lugar do desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do esquecimento e até do saber.” (Gonzalez, 2020, p.78). Sua função é se estabelecer enquanto verdade, ao passo em que oculta a memória. Já a memória “[...] a gente considera como o não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. Consciência exclui o que memória inclui.”(Gonzalez, 2020, p.78).

E por que falar sobre consciência e memória? Porque é a partir dessas noções que podemos entender melhor o espaço das mulheres negras no Brasil. Em suma, eu diria que temos dois grandes caminhos que se entrelaçam e que podem servir como base para a nossa crítica. O primeiro deles segue o caminho de Gonzalez. O segundo, o de Patricia Hill Collins. No caso da primeira via, Gonzalez (2020) afirma que o mito da democracia racial, a falsa ideia de que o Brasil possui três raças (branca, indígena e negra) e que elas vivem em igualdade e harmonia graças à miscigenação, carrega consigo o ocultamento da violência sofrida por pessoas negras. Desse ocultamento derivam: a negação (do estatuto de sujeito humano); a ridicularização; a neutralização (por meio da folclorização). Esses ocultamentos, que se utilizam de diversas técnicas como visto acima, são traduzidos em hierarquizações, em especial da mulher negra: “Mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta. Basta a gente ler jornal, ouvir rádio e ver televisão.” (Gonzalez, 2020, p.77)

Aqui o primeiro caminho e o segundo se vinculam: o ocultamento, como mencionado por Gonzalez (2020), desmembra-se em técnicas de hierarquização, que subjugam as mulheres. Uma dessas ferramentas racistas, que aglutina os diversos modelos de ocultamento, é a das imagens de controle. Esse termo, cunhado primeiramente por Patricia Hill Collins (2019) e que, resumidamente, significa imagens impostas às mulheres negras, isto é, a categorização delas em grupos vinculados a identidades sociais definidas. Na leitura de Collins (2019), as mulheres negras passam a ser entendidas somente como ‘mammies’, ‘matriarcas’, ‘mães sob a proteção de políticas de bem-estar’, ‘mulas’ ou ‘mulheres sexualmente denegridas’¹. Na realidade brasileira, podemos pensar, assim como Gonzalez (2020), nas amas de leite, Mães Pretas, mulatas prostitutas, quituteiras, empregadas domésticas… Enfim, em todas aquelas que estão, como nos diz Carolina de Jesus, no quarto de despejo (2004).

Para Winnie Bueno (2020, p.86)

A partir das imagens de controle formam-se políticas e comportamentos institucionais que estabelecem barreiras estruturais nos mais variados campos, consolidando o status de pobreza e precariedade desse grupo. A estratégia de dominação utilizada pelas elites, portanto, perpassa a disseminação das imagens de controle, que acaba culpabilizando as mulheres negras pela situação socioeconômica desigual em que vivem. Ao manipular as narrativas a respeito do cotidiano dessas mulheres, os grupos dominantes criam pressupostos que têm por objetivo silenciar e imobilizar as lutas e estratégias que as mulheres negras articulam para sobreviver ao cenário de injustiça social. 

Desse modo, pensar o ocultamento das mulheres negras, em conjunto com a imagem de controle, é uma boa forma de pautarmos a problemática do Dia da Consciência Negra, trazendo, junto a crítica antirracista, uma crítica que se propõe interseccional e busca compreender os espaços relegados às mulheres negras na Améfrica Ladina, em especial no Brasil. É importante ressaltar, entretanto, que essas são as violências rotineiras e que por anos e anos conferiram um espaço marginal a essas mulheres. No entanto, é nossa função auxiliar na confecção e abertura de espaços possíveis, bem como fizeram e ainda fazem as pesquisadoras aqui citadas. Afinal, “Na impossibilidade de apelar para a consciência brasileira, acreditamos que a consciência humana não poderá mais permanecer inerte, endossando a revoltante opressão e liquidação coletiva dos afro-brasileiros [...].” (Nascimento, 2016, p.167)


Notas

¹ Utilizo aqui o termo ‘mulheres sexualmente denegridas’ assim como Patricia Hill Collins, como uma forma de provocação. 


Referências


BUENO, W. Imagens de controle: um conceito do pensamento de Patricia Hill Collins. Porto Alegre: Editora Zouk, 2020.


COLLINS, P. H. Pensamento Feminista Negro: o poder da Autodefinição. In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Pensamento feminista: Conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, p. 341- 352.


GONÇALVES, L. A & SILVA, P. B. G. E., (1998). O jogo das diferenças: o multiculturalismo e seus contextos. Belo Horizonte: Autêntica, 1998.


GONZALEZ, L. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. In: RIOS, F.; LIMA, M. (orgs) Por um Feminismo Afro-Latino-Americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 75- 93.


_______. A categoria político-cultural da amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Nº. 92/93 (jan./jun.). 1988b, p. 69-82


JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2004.


NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 3ed. São Paulo: Perspectivas, 2016.

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