Por: Keila Alves
Letícia Helena
Vitória Araújo
Introdução
Quando entramos em debates de temas como as práticas sexuais que saem do padrão heteronormativo, a bissexualidade, e outras sexualidades fluídas, ocupam um espaço ainda pouco compreendido. Desde muito tempo a bissexualidade é marginalizada e diretamente relacionada a estigmas como à infidelidade e transmissão de Infecções Sexualmente Transmissíveis, ISTs. E quando não é invisibilizada, a bissexualidade é tratada como uma orientação sexual duvidosa e, por muitas vezes, polêmica. (JAEGER et al, 2019) A cultura conservadora presente nas sociedades patriarcais acabam por fomentar a invisibilidade de corpos que não atendem a padrões pré estabelecidos por ela. Assim, esse processo tende a ter uma influência direta na formação de profissionais e políticas heteronormativas. Ainda, se tratando de políticas públicas voltadas à saúde, se faz necessário a discussão acerca da ampliação da participação social, principalmente no que se diz respeito às mulheres bissexuais. A partir disso, o presente artigo tem por objetivo desenvolver um debate sobre a invisibilização e violências às quais mulheres bissexuais são constantemente submetidas e entender como esses estigmas influenciam nas elaborações de políticas públicas de saúde voltadas à essas pessoas.
Invisibilidade e estigmas
Vista ainda como apenas uma fase de confusão e incerteza que logo pode ser superada, a bissexualidade, principalmente a feminina, ainda vem sendo constantemente objetificada, fetichizada e invisibilizada - herança de um passado onde era entendida apenas como uma espécie de estágio de desenvolvimento para a homossexualidade ou heterossexualidade. Apenas a partir do século XX que o termo "bissexual" começou a ser utilizado para referir-se a pessoas que sentiam atração por ambos os sexos. No caso do Brasil, pessoas que se identificam como bissexuais sofrem preconceitos por parte da própria comunidade LGBTQIA+, onde são taxadas como pessoas "ainda dentro do armário" ou "em cima do muro" (JAEGER et al, 2019). Outrossim, existe uma chamada deslegitimação do termo bifobia, onde muitos gays e lesbicas por muitas vezes colocam em questão vivências bissexuais, afirmamando que os mesmos apenas sofrem discriminação apenas quando estão em relacionamentos com pessoa do mesmo gênero, resumindo a termos de homofobia ou da lesbofobia (JAEGER, 2018). Esse processo de apagameno ocorre através do que se entende por um "contrato epistêmico de apagamento bissexual" entre heteros, gays ou lésbicas. A bifobia, portanto, não é reconhecida, as vivências dessas pessoas não são levadas em consideração, ocasionando em situações de zombaria e olhares de desprezo. Isso implica em afirmar que pessoas bissexuais não existem ou então que não deveriam sequer existir.
Para mais, se faz necessário realizar o recorte de gênero, levando em consideração que “desde o século XVIII até os dias de hoje, a bissexualidade, em especial a feminina, tem sido objetificada e fetichizada pela pornografia escrita, desenhada, fotografada e filmada.” (JAEGER et al, 2019, p.11). O estereótipo que se assume acerca de mulheres bissexuais são que elas se encontram "em cima do muro" "confusas" e "indecisas" do ponto de vista do apagamento, e vistas como "promíscuas" e “safadas” a partir da análise da hiperssexualização. Essas pré noções estigmatizam identidades bissexuais, reforçando o binarismo monossexual e marginalizam essas pessoas dentro da própria comunidade que deveria ser acolhedora. Há uma percepção errônea de que mulheres bi's são lésbicas que ainda não tiveram a coragem de se assumirem ou héteros querendo apenas diversão. Podemos afirmar que essa idealização é frutos de uma estrutura social onde colocam as bissexualidades como "desvios". Com esses estigmas, muitas mulheres bissexuais passam a questionar então suas vivências e suas próprias existências. Se faz presente a noção de que quando essas adentram em uma relação, automaticamente deixam de ser vistas como bissexuais e passam a ser entendidas como heterossexuais ou lésbicas, existindo a ideia de que essas pessoas finalmente tomaram uma decisão e escolheram um dos lados (JAEGER, 2018).
Se tratando de hipersexualização, mulheres bissexuais são vistas como promiscuas e são constantemente fetichizadas, principalmente por homens cis héteros. Assume-se que elas estão sujeitas a aceitarem qualquer tipo de proposta de cunho sexual, como por exemplo o ménage à trois, essa ideia dá espaço a uma dimensão de casos de violência sexual e de assédios (JAEGER, 2018). Durante os anos 1980, com a chamada epidemia da AIDs, pessoas bissexuais eram vistas como uma espécie de "ponte" para o HIV entre homossexuais e heterossexuais. O que se observa a partir disso, é que ainda hoje mulheres bissexuais são percebidas como "vetores de doenças", pelo fato de existir um estigma dentro da própria comunidade de que as mesmas por "possuírem inúmeros parceiros sexuais” contraem doenças e as transmitem para os "monossexuais" (JAEGER et al, 2019). Existe então, segundo Lewis (2017), um ciclo vicioso e paradoxal do apagamento da bissexualidade:
“(1) se não insistem que sempre sentiram desejo por “ambos” os gêneros desde a infância, não são reconhecidas como bissexuais; (2) porém, ao insistir nisso, são super-sexualizadas e chamadas de promíscuas; (3) se, para combater isso, insistem que são monogâmicas, são rotuladas de lésbicas ou heterossexuais, apagando novamente a bissexualidade, e (4) o ciclo vicioso e paradoxal de apagamento e super-sexualização da bissexualidade recomeça.” (LEWIS, 2017, p.10-11)
Como promover a saúde de mulheres bissexuais dentro de um contexto de invisibilidade?
O conservadorismo presente nas sociedades capitalistas e patriarcais geram a invisibilidade de corpos que não atendem aos padrões estabelecidos por ele. Por consequência, esse processo influencia diretamente na formação de profissionais e políticas públicas voltadas somente para mulheres heterossexuais. Diante disso, a sociedade está produzindo tanto classificações como mecanismos disciplinares, e desenvolve, portanto, novas instituições de controle frente ao surgimento de uma diversidade de identidades sexuais. Nessa conjuntura, os comportamentos sexuais não aceitos culturalmente acabam por serem invisibilizados, considerados incômodos e dessa forma, tratados como inexistentes. (ANTUNES, 2021)
Ao tratar de políticas públicas de saúde, é fundamental discorrer acerca da necessidade da ampliação da participação social, principalmente no que se refere às pessoas LGBTQIA +. Visando a promoção da saúde de mulheres bissexuais, é essencial que haja um forte estímulo para a construção de conhecimento sobre a causa, como também, um maior acesso a ele por essa parcela da população. Além do mais, salienta-se que para promover uma saúde de forma integral e inclusiva, é indispensável que os processos violentos desses corpos estigmatizados por meios de exclusão social, tais como pela homofobia, transfobia e racismo, sejam pautados com maior profundidade. Ainda em (ANTUNES, 2021) concomitantemente, é preciso reconhecer que esses aspectos interferem nos acessos aos serviços dessa população, a exemplo disso temos a falta de prevenção de câncer de colo, para combate de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST’S) e AIDS. Por mais que o cuidado com a saúde das mulheres tenha tido avanços muito significativos nos últimos tempos, poucos trabalhos de pesquisa têm estudado como esses avanços de fato impactam a saúde de mulheres lésbicas e bissexuais ao considerar que esse público não se enquadra no modelo de atenção básica e prioritária nos sistemas de saúde. Ademais, a falta de visibilidade bissexual é uma realidade muito pouco conhecida, isso em decorrência de preconceitos e tabus enraízados socialmente, que para serem desmistificados, é necessário que sejam debatidos constantemente. Por conseguinte, é preciso enfatizar que há uma grande necessidade de compreender mais as especificidades das mulheres bissexuais na saúde, seja por parte de profissionais que atuam na área, como também, nas bases de uma educação sexual adequada para essa população invisibilizada. É preciso, portanto, que essas mulheres possam dialogar sem medo, com profissionais capacitados para atendê-las sem reproduzir mais preconceitos. Assim como em (ANTUNES, 2021) é urgente que o saber não se distancie da sexualidade, justamente para que esse tema seja mais discutido em nossa sociedade.
Como pautado em (IZIDORO, 2019) quando as mulheres que utilizam o serviço público de saúde - a exemplo do SUS - não se sentem acolhidas pelos profissionais, não há liberdade para que questionamentos sejam feitos em torno de processos preventivos. Por consequência, o tratamento fica comprometido e assim, essas mulheres tendem a não confiar que pertencem a esse espaço público. Com isso, os profissionais de serviço social que trabalham especificamente com a demanda de mulheres bissexuais, devem promover continuamente o enfrentamento ao conservadorismo e aspectos moralistas que se apresentem no espaço da saúde pública. Isso se dá principalmente porque o serviço social, quando no contexto de saúde pública, está frente a movimentos sociais que atuam nessa questão. Diante desse fator, é necessário enfatizar que o assistente social possui uma competência que o diferencia no momento de encaminhar ações nesse segmento. Por conseguinte, sua presença deve proporcionar uma ampliação desse debate, a fim de trazer visibilidade para mulheres lésbicas e bissexuais, como também, é preciso que sejam construídas novas práticas juntos às equipes de saúde. Um ambiente acolhedor com garantia de direitos, qualidade no atendimento e demandas específicas atendidas é o ideal para todos na sociedade.
Universalidade, integralidade e equidade: qual é a situação das políticas de saúde públicas para a população Bissexual?
Parte essencial da análise quanto a efetividade de políticas públicas direcionadas à população LGBTQIA+ partem a partir do contexto do sistema de saúde nacional. No espectro das políticas sociais a serem aplicadas pelo Estado, os desígnios de saúde são os que enfrentam maiores dificuldades na categoria de integralização e padronização de projetos e programas voltados à extinção de práticas discriminatórias a essa minoria. O estigma e invisibilização dos membros dessa comunidade, incluindo as pessoas bissexuais, contribuíram por muito tempo para a deficiência sistêmica do sistema de saúde brasileiro quando avaliado sua aplicabilidade para diferentes segmentos da sociedade.
De forma a exemplificar melhor os argumentos aqui apresentados, torna-se necessário declarar a definição e formulação de políticas públicas, que podem ser assim representadas como o processo que os governos e o próprio Estado botam em práticas por meio de programas sociais o seu propósito em determinados segmentos. Desse modo, segundo Paim & Teixeira (2006, p.36), a política pública em saúde “corresponde às respostas sociais – via Estado, empresas, o chamado “terceiro setor” e comunidade – em face das condições de saúde e dos seus determinantes [...]”. A formulação e pleno desenvolvimento dessas políticas são um desafio maior para países com frágil tradição democrática, como é o caso de muitos países latino americanos como o Brasil, tornando ainda mais laborioso assegurar que medidas de cunho social sejam promovidas universalmente pelo território (MAROJA et al, 2012).
No Brasil, é possível examinar este contexto mais de perto, principalmente a partir da criação do Sistema Único de Saúde, que por meio de seus pilares fundamentais nos princípios de universalidade, integralidade e equidade, conseguiram angariar e ser pioneiro neste debate. Apesar de todo o progresso que ele representa, é preciso assegurar que o SUS ainda requer muitas melhorias, principalmente no que se refere à problemas estruturais. Segundo Mello et al (2011, p. 12), a institucionalização do SUS começou a guiar os próximos passos da criação de políticas afirmativas para a população LGBTQIA+.
A criação do SUS significou um passo fundamental com vistas à universalização do acesso a ações de saúde concebidas em uma perspectiva fundada na integralidade, que procuram romper com um histórico de serviços públicos ineficazes e ineficientes, decorrentes de políticas de saúde curatistas, hospitalocêntricas, privatistas e excludentes [...] Quanto ao princípio da equidade, também estruturador do SUS, o que se coloca em evidência é o fato de que grupos sociais distintos, como negras, índias, mulheres, crianças, idosas e LGBT, podem ter necessidades de saúde diferenciadas, implicando demandas por ações governamentais também diferenciadas.
A partir do conceito da equidade, começa-se a pensar na efetividade e aplicabilidade dessas políticas públicas, que muitas vezes tornam-se soluções teóricas sem funções práticas bem definidas e pensadas para a população LGBTQIA+ sem os parâmetros que envolvem identidade de gênero e orientação sexual. É necessário, também, pensá-las a partir de um espectro envolvendo outros atributos identitários de forte relevância, como idade, raça/cor e classe social. Nesse sentido, cabe dizer que as políticas públicas de saúde, e seus programas e projetos derivados muitas vezes não atingiam vigorosamente todas as pessoas que fazem parte de seu escopo.
O contexto nacional tem maior destaque nesse sentido a partir de 2004, com o lançamento do “Programa Brasil sem Homofobia – Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e de Promoção da Cidadania Homossexual”. No mesmo ano, é possível destacar também o documento Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: princípios e diretrizes, “no qual se reconhece a necessidade de atenção, no atendimento à saúde, às particularidades de diferenciados segmentos de mulheres, como negras, indígenas e lésbicas” (MELLO et al, 2011, p. 15). Mesmo com o progresso dessas políticas, ainda é posto em cheque sua efetividade para atingir grupos sociais mais marginalizados e invisibilizados, como a população transexual e bissexual. É preciso, portanto, que seus princípios fundadores de integralidade e equidade sejam aplicados materialmente em território nacional e dentro do sistema de saúde a fim de garantir que sejam aplicáveis e relevantes na inclusão dos direitos dessa parcela da população brasileira.
continuarão a existir barreiras simbólicas, morais e estéticas que impedem o acesso da população LGBT a serviços públicos de saúde de qualidade, livres de preconceito, discriminação e exclusão, especialmente em relação às pessoas mais pobres e às que questionam de maneira mais profunda os binarismos de gênero [...] As mudanças em curso não são simples e parecem não ocorrer na velocidade desejada pelas pessoas que buscam atenção e cuidados (MELLO et al, 2011, p. 25).
Considerações finais
A dificuldade de acesso aos serviços de saúde de mulheres bissexuais se dá principalmente pela falta de conhecimento das equipes profissionais que atuam nesse âmbito. Dentro disso, esses profissionais reproduzem preconceitos, estigmas e estereótipos durante sua atuação, o que prejudica diretamente essas mulheres, sobretudo no que tange ao direito de ter atendimentos e tratamentos adequados às suas demandas individuais. Para que esse cenário sofra transformações profundas é indispensável que ocorra um fortalecimento tanto entre quem atua na área da saúde, na gestão pública, como nas participações dos movimentos sociais que lutam por essa causa, como o próprio movimento feminista e movimentos LGBTQIA+. Ademais, existe uma urgência alarmante quanto à ampliação do debate sobre a saúde das mulheres bissexuais para a sociedade em todos os espaços, para garantir que os direitos dessas mulheres possam ser efetivamente assegurados.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Aline. A sexualidade de corpos invisibilizados pelas representações médicas: como promover a saúde de mulheres lésbicas e bissexuais diante desse contexto? Epistemologia e metodologia da pesquisa interdisciplinar em ciências humanas. v.2, págs. 149-157, 2021. Disponível em: https://sistema.atenaeditora.com.br/index.php/admin/api/artigoPDF/46613 Acesso em: 16 set. 2021.
BANDEIRA, L. Avançar na transversalidade da perspectiva de gênero nas políticas públicas. Brasília: CEPAL/Secretaria Especial de Políticas para mulheres, 2005.
IZIDORO, Giovanna. BARROS, Camila. PONTES, Felipe. Wenner, Rosiléa. MALANOWSKI, Lara. A invisibilidade das mulheres lésbicas e bissexuais no SUS: um debate entre serviço social e saúde. Anais do 7º Congresso Paranaense de Assistentes Sociais. Ponta Grossa, Paraná. Págs. 6-8, 2019.
JAEGER, M. B. EXPERIÊNCIA DE MINAS BISSEXUAIS: POLÍTICAS IDENTITÁRIAS E PROCESSOS DE MARGINALIZAÇÃO. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Florianópolis, págs.131, 2018.
JAEGER, M. B. et al . Bissexualidade, bifobia e monossexismo: problematizando enquadramentos. Revista Periódicus, [S. l.], v. 2, n. 11, págs. 1–16, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/28011. Acesso em: 16 set. 2021.
LEWIS, E. S. O ciclo paradoxal de apagamento e super-sexualização da bissexualidade nos movimentos LGBT: resistências em narrativas de ativistas bissexuais. Anais do V Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades. Salvador, Bahia, págs. 1-12, 2017.
MELLO, Luiz; AVELAR, Rezende Bruno de; MAROJA, Daniela. Por onde andam as políticas públicas para a população LGBT no Brasil. Sociedade e Estado [online]. 2012, v. 27, n. 2 [Acessado 18 Setembro 2021] , pp. 289-312. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-69922012000200005>. Epub 30 Out 2012. ISSN 1980-5462. https://doi.org/10.1590/S0102-69922012000200005.
MELLO, Luiz et al. Políticas de saúde para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil: em busca de universalidade, integralidade e equidade. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro) [online]. 2011, n. 9 [Acessado 18 Setembro 2021] , pp. 7-28. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1984-64872011000400002>. Epub 16 Dez 2011. ISSN 1984-6487. https://doi.org/10.1590/S1984-64872011000400002.
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