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A DIPLOMACIA BRASILEIRA NO ESPELHO

Atualizado: 20 de abr. de 2021

O ETHOS INSTITUCIONAL DE FORMAÇÃO DO ITAMARATY E A LUTA POR MAIOR INSERÇÃO DAS MULHERES

Daniele Thomaselli Vasques de Oliveira

Kethlyn Winter


O conceito de ethos pode ser traduzido a partir da ideia de uma cultura compartilhada por um grupo de indivíduos em determinada época, marcando as normas, costumes, valores e crenças que norteiam a socialização do mesmo. Nesse sentido, ao falarmos sobre o ethos do Itamaraty nos referimos à cultura organizacional oficializada a partir da formação dos diplomatas no Instituto Rio Branco (IRBr) e da edificação da carreira diplomática no seio do Ministério das Relações Exteriores (MRE), também conhecido como Itamaraty.

Ao tornar-se independente de Portugal, o Brasil passou a estabelecer, gradativamente, uma agenda de Política Externa Brasileira (PEB) para representar os interesses nacionais dentro do Sistema Internacional, isto é, o campo de relações entre diferentes Estados soberanos. A diplomacia surge, então, enquanto ferramenta de execução da PEB formulada pelos diligentes da nação, por intermédio de negociações interestatais.

Se feita uma análise histórica da construção institucional do Itamaraty, é perceptível que seu processo caminha em paralelo à formação do Estado brasileiro e, principalmente, no que tange à constituição das elites envolvidas (CHEIBUB, 1985). Dessa forma, o autor (1985) divide essa história em três momentos: i. período patrimonial: 1822 a 1902; ii. momento carismático: 1902 a 1912 (com destaque na figura de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco); e iii. período burocrático-racional: 1912 até hoje (sobretudo com Vargas). Dentre esses períodos, Cheibub utiliza modelos de autoridades - modelo de Max Weber -, que são divididos em autoridade tradicional; autoridade carismática; e autoridade burocrática.

Inicialmente, todo o corpo diplomático era instituído a partir da escolha ministerial, o que levou a uma configuração na qual eram selecionados membros das famílias das elites políticas e existia pouca ou nenhuma separação entre os interesses públicos e os interesses pessoais das chefias administrativas, havendo uma apropriação senhorial desses cargos, como descreve Cheibub (1985). Não existia ainda a profissionalização da carreira, cuja participação estava atrelada exclusivamente ao nível de influência de um indivíduo e sua família perante à sociedade, sendo esse meio restrito a um pequeno grupo - exclusivamente de homens.

Em seguida, o período carismático foi marcado pela diligência de Barão do Rio Branco, o Ministro dos Negócios Exteriores que permaneceu por mais tempo no cargo, de 1902 a 1912, com um grande peso político e popularidade. Como pontua De Souza (2019, p. 48), ele “fora criado entre os membros da corte de Pedro II, tendo na aristocracia brasileira seu meio social. Possui um perfil monarquista e passou duas décadas de sua vida na Europa, o que explica muitos dos seus ideais aristocráticos e de eugenia”. Essa breve descrição da personalidade de Rio Branco - que veio a se tornar patrono da diplomacia brasileira e dá nome a notórios órgãos, como o IRBr, nos dias de hoje - é importante para compreender a composição da representação internacional brasileira, à sua imagem e semelhança: branca, intelectualizada, bem relacionada e da alta sociedade (DE SOUZA, 2019).

Desse modo, passa a se conformar na gestão do chanceler uma homogeneidade do corpo de diplomatas por meio da instrumentalização do ethos diplomático e de um spirit de corps - isto é, uma identidade comum, que marca o pertencimento e identificação entre os indivíduos, fortalecendo um trabalho colaborativo em equipe dentro de determinada entidade - do Itamaraty (CHEIBUB, 1985). De Moura (2006, p. 21) compreende que “o simbolismo calcado em imagens que remetem à ordem doméstica e familiar é de extrema relevância para entender o senso de exclusividade compartilhado pelos diplomatas brasileiros”, reforçando um status identitário e estilo de vida próprio, além da ligação quase biológica entre aqueles pertencentes ao organismo, ao corpo diplomático.

Mas o patrimônio do “corpo” diplomático brasileiro (uma metáfora biológica) não se restringe às suas instalações materiais. Ele é, principalmente, um conjunto de atribuições que se acumulam em um capital simbólico, social e político, monopolizado pela Casa. Esse monopólio consiste, principalmente, do direito de ser o representante “legítimo” do estado brasileiro em suas interações com outros estados. Mas consiste também do próprio direito de seus membros de portarem documentos de identidade diferenciados do restante da população brasileira, do acesso a segredos de estado e do monopólio exclusivo de seus membros de utilizarem o título “diplomata” (DE MOURA, 2006, p.23).

Após essa década de liderança de Rio Branco, passou a se delinear, paulatinamente, a burocratização da administração pública brasileira, incluindo o MRE, tal qual frisado por Cheibub (1985). Nesse terceiro momento, visando formalizar e sistematizar o processo de seleção e ingresso ao Ministério, foi regulamentado um concurso público de admissão - que mais tarde, em 1996, veio a ser nomeado Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD). Apesar de o recrutamento ter se tornado mais impessoal, visto que a convocação via indicação é substituída por uma candidatura, De Souza (2019, p. 66) analisa que “a ideia de que é um lugar destinado à nobreza permanece".

Em 1945, ademais, foi criado o Instituto Rio Branco (IRBr), a escola de formação dos diplomatas brasileiros, na qual a socialização institucional acontece de forma mais ostensiva, com a adequação do comportamento a partir de regras de etiqueta, hierarquia e normas de convívio. A profissionalização, em tese, garante maior abertura e torna o acesso à carreira diplomática mais democratico e igualitário. Contudo, não é isso que observamos na prática, pois a alta exigência da avaliação e especificidades como provas de idiomas exigem grande tempo de estudo, o que favorece a perpetuação das elites nesses cargos (DE SOUZA, 2019).

Quando se trata de igualdade de gênero e inserção de mulheres na diplomacia, esse apanhado histórico é repleto de altos e baixos. Em 1931, aconteceu a Reforma Mello Franco (Decreto-lei nº 19.592), que restringiu a participação de mulheres no corpo consular. Nesse momento, destaca-se a ação de Bertha Lutz ao enviar uma carta de protesto ao então Presidente da República, Getúlio Vargas. Posteriormente, em 1938, houve a Reforma Oswaldo Aranha (Decreto-lei nº 179), que unificou as carreiras consular e diplomática, além de ter proibido o ingresso das mulheres (reforma que durou 16 anos). Nos anos 1950, Maria Sandra Cordeiro de Mello teve sua aprovação na prova do concurso de admissão à carreira diplomática, mas precisou batalhar judicialmente por sua vaga. Como observado a partir dos acontecimentos apontados, a diplomacia é culturalmente masculinizada. Mesmo em seu período burocrático-racional, ressalta-se a afirmação do então Ministro das Relações Exteriores (1917-1918), Nilo Peçanha, que afirma a cultura masculina:

Não sei se as mulheres desempenharam com proveito a diplomacia, onde tantos atributos de discrição e competência são exigidos. E, se a requerente está aparelhada para disputar um lugar nesta Secretaria de Estado. Melhor seria, certamente para o seu prestígio, que continuassem à direção do lar, tais são os desenganos da vida pública. Mas não há como recusar a aspiração, desde que disso careçam e que fiquem aprovadas suas aptidões (EXTERIORES, 2018, 0min22).

A frase de Nilo Peçanha é atribuída ao caso de Maria José de Castro Rebello Mendes: primeira mulher a se inscrever no concurso para um cargo público ministerial, no ano de 1918, como Secretária de Estado do Itamaraty, enfrentou dificuldades e resistências. Rui Barbosa, diplomata e jurista brasileiro à época, atuou em defesa de Rabello, pois não havia dispositivos jurídicos que amparassem, de forma legal, a recusa da candidatura ao exercício administrativo simplesmente por se tratar de uma mulher. Esse caso foi encerrado com êxito, a partir do ingresso de Maria Rebello na instituição, o que, como ressaltam Brandão et al (2017, p. 290), “abriu as portas do Itamaraty para a candidatura e ingresso de outras mulheres” - avanço interrompido pelas reformas supracitadas no parágrafo anterior, as quais representaram um retrocesso a conquistas femininas no que se refere ao MRE.

Fazendo um paralelo entre esse panorama de difícil acesso a cargos públicos e o mercado de trabalho, Brandão et al (2017) observam que existe um paradoxo na medida em que “as mulheres conquistaram o direito ao voto e ingressaram formalmente no mercado de trabalho ao mesmo tempo em que foram proibidas por lei de ingressar na carreira de funcionárias públicas do MRE.” (BRANDÃO et al, 2017, 285- 286). Afinal, a ampliação de oportunidades e representação não é total - e sim, progressiva -, não verificando avanços, necessariamente, em toda e qualquer esfera de poder (BRANDÃO, et al, 2017).

No documentário “Exteriores - Mujeres Brasileñas en la Diplomacia” (2018), é feita uma discussão acerca da presença feminina no MRE, junto a marcantes momentos históricos de participação e exclusão da mulher na carreira. Assim, algumas falas desse debate chamam a atenção, como é o caso da Diplomata Gisela Padovan, que sinaliza o viés masculino da carreira, sendo a mulher sempre posta num lugar de busca e luta por conquistas, ao passo que para homens, o reconhecimento e crescimento da carreira é algo “dado”.

Ainda que existam mulheres na carreira diplomática, o viés masculino prevalece. E, por mais que formalmente, as mulheres tenham conquistas relevantes na diplomacia, a organização informal do corpo diplomático ainda é repleta de vícios e regras masculinas (TEIXEIRA, STEINER, 2017), exigindo a masculinização do comportamento das mulheres. Como alega a Diplomata Thereza Quintella, “Para prestar serviços à eles [homens diplomatas], elas [mulheres diplomatas] são ótimas. Mas depois, quando elas começam a concorrer com eles, é que elas se tornam um problema” (EXTERIORES, 2018, 4min53).

Tendo em vista que a organização informal dos diplomatas é o principal garantidor da visibilidade da mulher na diplomacia (TEIXEIRA, STEINER, 2017), este ainda é um grande desafio. É evidente que a questão de gênero tem se tornado cada vez mais notória no MRE, contudo não podemos afirmar que é uma causa ganha. Consoante apontado pela Diplomata Viviane Balbino, a mudança da cultura organizacional do Itamaraty é um processo gradual e de crescimento não automático (EXTERIORES, 2018).

Em 1954, se tornou Lei Federal (no 2.171) a não distinção de sexo no processo de admissão para atuar como diplomata, mas “outras práticas perpetuadas dentro do MRE também contribuíram para construí-lo enquanto espaço de poder generificado” (BRANDÃO et al, 2017, p. 295), sendo esses entraves burocraticos um dificultador, na prática, de uma real democratização. No ano de 2014, foi fundado um comitê para o combate à discriminação de gênero e de raça dentro do MRE a partir da união de mulheres membras “que, mobilizadas, demandaram ações mais concretas para promover a igualdade de gênero dentro da instituição“ (BRANDÃO et al, 2017, . 282), objetivando diversificar o quadro de diplomatas. No entanto, ainda existe subrepresentação e dificuldades na inserção e promoção de pessoas fora do escopo masculino, elitista e cis e héteronormativo. Brandão et al (2017) mencionam, também, um programa de ação afirmativa e uma prática não formalizada de incentivo à promoção de diplomatas mulheres a embaixadoras, algo que deveria vir a se tornar oficial.

Visto isso, é fundamental que se continue a luta para ampliar o espaço feminino na formulação da agenda de Política Externa Brasileira e garantir maior reconhecimento das mulheres na carreira diplomática, a fim de que mais pautas sejam alcançadas e não sejam limitadas pelo que foi conquistado até então (EXTERIORES, 2018). Por fim, questiona-se: até que ponto existe espaço para se desejar um feliz dia dA diplomata?

O dia de hoje (20 de abril) foi escolhido como dia do diplomata em razão do que seria o aniversário do Barão do Rio Branco, consistindo em um ritual “onde ocorre a formatura dos alunos do IRBr, em que a sua carreira diplomática de fato nasce, juntamente com o nascimento do Barão" (DE SOUZA, 2019, p. 59). Nesse tocante, há, mutuamente, a celebração do patrono da diplomacia nacional e o fortalecimento da comunidade diplomática por ele cultivada, adequando o quadro de funcionários do Itamaraty, historicamente, a moldes europeizantes e masculinizados (DE SOUZA, 2019). Ainda hoje celebramos, portanto, o ethos o qual as mulheres têm se esforçado para transformar.

A luta por uma inserção feminina no meio diplomático e ascensão natural na carreira é uma luta constante. Existem desafios já superados, porém muitos outros precisam ser alcançados. Por reconhecer que esta luta é um processo e que é necessário romper com a imagem preponderantemente masculina do IRBr, compreende-se que a mudança de cultura organizacional é lenta e precisa ser fomentada, sendo importante não limitar o escopo do que ainda é possível fazer em termos de progressos, como bem colocado pela Diplomata Viviane Balbino (EXTERIORES, 2018, 44min58). Isso porque existe um descompasso entre as barreiras legais ultrapassadas por esse grupo minoritário e as barreiras enfrentadas no cotidiano das mulheres diplomatas. Uma provocação ainda necessária é: haverá espaço para as mulheres em sua diversidade e multiplicidade? As mulheres não são, afinal, um corpo homogêneo e é urgente pensar e estabelecer uma diplomacia efetivamente brasileira, não branca, não elitista e diversa, diferentemente da estabelecida pelo spirit de corps vigente.


REFERÊNCIAS:


BRANDÃO, Luciana et al. As mulheres no Itamaraty: as reformas do Ministério das Relações Exteriores à luz da teoria feminista. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, v. 6, n. 11, p. 281-304, 2017. Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/moncoes/article/view/6920. Acesso em: 17 abr. 2021.

CHEIBUB, Zairo Borges. Diplomacia e construção institucional: o Itamaraty em perspectiva histórica. Dados, v. 28, n. 1, 1985. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/326242/mod_resource/content/1/CHEIBUB%2C%20Zairo_Diplomacia%20e%20Constru%C3%A7%C3%A3o%20Institucional%20O%20Itamaraty%20em%20Perspectiva%20Hist%C3%B3rica.pdf. Acesso em: 18 abr. 2021.

DE MOURA, Cristina Patriota. O inglês, o parentesco e o elitismo na Casa de Rio Branco. Cena Internacional, p. 20 - 34, 2006. Disponível em: https://biblat.unam.mx/hevila/CENAInternacional/2006/vol8/no1/2.pdf. Acesso em: 17 abr. 2021.

DE SOUZA, Hannah Guedes. O Ethos do Itamaraty: análise sobre a instituição e a socialização dos diplomatas. Revista Espirales, [S. l.], v. 2, n. 3, p. 43–70, 2019. Disponível em: https://revistas.unila.edu.br/espirales/article/view/1442. Acesso em: 17 abr. 2021.

EXTERIORES: Mulheres Brasileiras na Diplomacia. Direção de: Ivana Diniz. Roteiro: Ana Beatriz Nogueira e Ivana Diniz. Grupo de Mujeres Diplomáticas brasileñas, 2018. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vkVUOmF1ew8. Acesso em: 17 abr. 2021.

TEIXEIRA, Mariana Cockles; STEINER, Andrea Quirino. As mulheres na carreira diplomática brasileira: considerações sobre admissão, hierarquia e ascensão profissional. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD, v. 6, n. 11, p. 250-280, 2017. Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/moncoes/article/view/6918. Acesso em: 17 abr. 2021.

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