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ABOLIÇÃO DA ESCRAVATURA E MEMÓRIA: O PROTAGONISMO DE ESPERANÇA GARCIA

por Franciely Portela

Nicole Canali

A memória é, em toda sua complexidade, uma ferramenta de resgate de circunstâncias e valores passados que nos ajudam a compreender o presente e construir o futuro, sendo mantida através da oralidade, fortemente reproduzida de forma cultural, e de documentos históricos. Um dia como 13 de maio, no qual comemora-se a Abolição da Escravatura no Brasil, revitaliza não apenas as homenagens à memória das vítimas da escravidão, mas também os debates sobre reivindicações e resistência que fundamentaram o último século da história brasileira.

Tendo seus feitos relacionados a um documento histórico, Esperança Garcia fora um exemplo de resistência e coragem às condições impostas pela vida escravizada no século XVIII. Em “A” carta, datada de 6 de setembro de 1770 e encontrada em 1979 pelo historiador Luiz Mott no arquivo público do Piauí, Esperança — mulher, negra, mãe, destemida — denuncia as condições de maus tratos as quais eram submetidos os escravizados da região piauiense, cem anos antes da assinatura da Lei Áurea. Da sua própria vida, fora o descrito na carta, sabe-se muito pouco. Conforme aponta Aguiar Junior et al. (2020), Esperança nasceu e foi criada na fazenda de Algodões, na região de Oeiras, que estava sob posse de jesuítas, e “possivelmente aprendeu a ler e escrever português com os padres jesuítas catequizadores” (INSTITUTO ESPERANÇA GARCIA, 2021).

Em sua carta, que carrega as dores de uma época autoritária, patriarcal e racista, Esperança delata a violência cometida contra ela, seus filhos e suas “parceiras” — como a própria determina as demais mulheres que eram juntamente sujeitas aos abusos — descrevendo-se como um “colchão de pancadas”, também estando privada de seu exercício religioso quando sequer podia batizar sua criança “e duas mais” (INSTITUTO ESPERANÇA GARCIA, 2021). Pela forma como seus sentimentos foram externados e pelos apelos feitos ao governador a quem foi direcionado o documento, a escrita foi reconhecida como uma petição, sendo uma das primeiras cartas, às quais se tem acesso, a expressar direito. Um exemplo seria quando Esperança “exige o direito de voltar para o lugar de origem, a Fazenda de Algodões, com o intuito de viver ao lado do seu marido e dos filhos” (AGUIAR JUNIOR et al., 2020, p. 105).

De tal forma, em 2017, através de uma solicitação da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra do Piauí, Esperança Garcia foi enfim e merecidamente reconhecida pela OAB do estado como a primeira advogada piauiense, tornando-se uma constante inspiração na luta contra o racismo, sendo também comemorado desde 1999 no Piauí, o dia 6 de setembro como o Dia Estadual da Consciência Negra, em homenagem a data na qual a carta foi redigida (INSTITUTO ESPERANÇA GARCIA, 2021).

Entretanto, o protagonismo de Esperança Garcia não provoca apenas admiração pela sua figura: uma jovem, negra, escrava e inteligente, que usou da sua capacidade de escrita para apontar abusos sofridos. Nem apenas provoca a contemplação de uma data específica, como é o caso do dia 13 de maio. O protagonismo dessa mulher carrega repercussões práticas na luta abolicionista e na construção do povo negro livre no pós-abolição.

No que se refere ao efeito prático pré-abolicionista da carta de Esperança Garcia, destaca-se a reivindicação de direitos. A luta abolicionista foi uma luta dos escravizados. Entretanto, o fim da escravidão é sempre creditado aos brancos e poderosos, enquanto os negros escravizados aparecem retratados apenas como passivos receptores da liberdade. Não são lembradas das reivindicações e dos sacrifícios feitos pelos próprios escravos. Fazendo uma reflexão rápida: tenho certeza que todos se lembram de quem assinou a Lei Áurea, mas quantas vezes já foi mencionado, ou com que frequência é lembrado o nome de Esperança Garcia?

Fonte: Instituto Esperança Garcia

De fato, Esperança escreveu sua carta 118 anos antes da abolição da escravatura, mas isso não diminui sua importância. A luta abolicionista contou com movimentos populares, obras de arte e peças de teatro. Também houve produção literária a respeito, porém poucas com as características da produção de Esperança Garcia, e nenhuma de autora tão fora do comum: uma escrava, negra, mulher.

Já no que se refere ao papel pós-abolição, a carta de Esperança Garcia tem função documental, no sentido de ser um registro autêntico, que serve, entre outras coisas, como lembrança. Sendo assim, sua implicação prática se revela na construção da identidade do povo negro no Brasil.

Após 1888, o Brasil passou por um processo marcado pela eugenia, conhecido como europeização (SEYFERTH, 2002). Isso significava o incentivo da migração de povos europeus para o Brasil, com o intuito de "embranquecer" a população. Porém, as políticas de europeização não apenas embranqueceram a população brasileira, mas também embranqueceram sua consciência e sua História. Essa é uma das razões pelas quais existem desafios referentes à identidade étnica no Brasil até os dias de hoje.

A identidade, por sua vez, é o senso de pertencimento a um grupo (SEN, 2006), e sua construção é um fenômeno dinâmico (BILLIG apud DONG, 2018). Benedict Anderson, em sua obra Comunidades Imaginadas (2006), alega que comunidades são artificiais, construídas no imaginário das pessoas. Assim, a Memória Coletiva, decorrente de fenômenos políticos e culturais, como a História, a linguagem e os símbolos, são essenciais para a formação da identidade de um povo ou de uma comunidade.

Essa percepção corrobora para o argumento de que a carta de Esperança Garcia tem efeito prático pós-abolicionista. A carta, como foi mencionado anteriormente, serve como lembrança da História do povo negro no Brasil. Sendo assim, o protagonismo de Esperança faz frente à tentativa de apagar e embranquecer a História brasileira. A carta é um fenômeno histórico, um ato político, um instrumento de Memória Coletiva. Portanto, um mecanismo de formação de identidade. Mais do que isso: um produto necessário, não apenas para o Brasil pré-abolição e pós-abolição, mas também para o Brasil contemporâneo.

No que concerne ao dia da Abolição da Escravatura no Brasil, é dever de toda a população manter viva a memória daqueles que foram prejudicados pela perseguição racial e discriminação que açoitaram o passado brasileiro, carregando o dever de não tornar a repetir tais ações no presente ou em qualquer momento no futuro. Aos que leem esse texto, cabe agora a missão de aumentar a força do nome de Esperança Garcia e sua corajosa atitude na luta contra o escravismo.

A seguir, temos uma imagem da carta original escrita por Esperança, sendo possível encontrar sua versão transcrita em linguagem mais atual no site do Instituto Esperança Garcia, que carrega tal nome em sua memória, e cuja estrutura é voltada, desde 2016, para a educação em direitos humanos, permitindo reflexões quanto à igualdade de gênero, raça, classes e sexualidade.




REFERÊNCIAS


AGUIAR JUNIOR, Antonio Lisboa de et al. Esperança Garcia: uma escrava visionária. In: SOUZA, Liliane Pereira de (org.). Sobre as mulheres: as melhores coletâneas de 2020. Campo Grande: Editora Inovar, 2020. p. 102-108. Disponível em: https://editorainovar.com.br/_files/200000490-7855378555/SOBRE%20MULHERES%20AS%20MELHORES%20COLET%C3%82NEAS%20DE%202020.pdf. Acesso em: 03 maio 2021.


ANDERSON, B.R.O’G. (2006). Imagined Communities: Reflexions on the Origin and Spread of Nationalism. London, New York, NY: Verso.


DONG, Wenchao. The Construction of National Identity in Television Series. University of Ottawa. Ottawa, 2018.


INSTITUTO ESPERANÇA GARCIA. Esperança Garcia: sobre. Disponível em: https://esperancagarcia.org/esperanca-garcia/. Acesso em: 03 maio 2021.


SEN, A. 2006. Identity and Violence: The Illusion of destiny. New York: W.W. Norton&Co.


SEYFERTH, Giralda. Imigração e a questão racial no Brasil. Revista USP, São Paulo, n.53, p 117-149, março/maio de 2002.

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