Terra, Comida, Dignidade e Vida:
A Luta Feminina como Eixo Estruturante do Movimento La Via Campesina
Por Beatriz Moreira de Oliveira
Em se tratando da organização de uma rede transnacional composta por entidades de base dedicadas às questões do campo, foi durante os anos de 1980 e 1990 que se empreenderam os esforços mais significativos para esse fim. Na ocasião do I Congresso Nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1985, além de se reunirem lideranças rurais brasileiras, ao país também vieram diversas delegações estrangeiras, especialmente latinoamericanas. Tal marco é bastante significativo na medida em que aponta a tendência de ampliação da luta pela terra a níveis internacionais. (PINTO, 2016, p.6)
Em concretização desse desejo pela união das entidades de base rurais, será no início da década de 1990 que La Via Campesina (LVC) terá seus contornos delimitados e objetivos definidos, partindo da Declaração de Managua, Nicarágua (1992) e da Declaração de Mons, Bélgica (1993). De acordo com essa, La Via Campesina corresponde a "uma iniciativa campesina autônoma, destinada a desenvolver propostas alternativas ao modelo neoliberal, a partir das particularidades de cada organização participante e da situação política, econômica, social e cultural que enfrenta” (Declaração de Mons, LVC, 1993).
Nesse sentido, o movimento antagoniza diretamente o sistema de produção capitalista e propõe – mediante a defesa da reforma agrária popular, da soberania alimentar, dos direitos campesinos e da agroecologia – a superação do neoliberalismo, num amplo esforço contra-hegemônico. Portanto, trata-se de uma oposição tanto material quanto imaterial, ao promover diferentes formas de utilização e ocupação dos territórios, ao mesmo tempo em que se resguarda a existência de alternativas ao atual padrão de vida e consumo, advindas de diferentes culturas e cosmovisões. (ROSSET, 2016)
Devido a seu caráter pluralista, La Via Campesina representa milhões de camponeses e pequenos agricultores, migrantes, trabalhadores rurais, sem-terras, comunidades indígenas e grupos de jovens e mulheres. Particularmente sobre essas últimas, ressalta-se a importância que tiveram suas mobilizações para estruturar o LVC como movimento, também, feminista e considerávelmente permeável às temáticas de gênero. Desse modo, o presente texto busca evidenciar a centralidade do papel das mulheres no alcance dos objetivos projetados pela entidade, bem como identificar suas principais pautas, reivindicações e avanços.
Em primeiro momento, é necessário que se faça compreender a posição que ocupa a mulher do campo na garantia da soberania alimentar. Desde a invenção da agricultura, a contribuição feminina para o sustento de toda a humanidade tem sido indispensável, encarregando-se dos processos de produção alimentícia, manutenção da biodiversidade de espécies vegetais, assim como da preservação e do compartilhamento de saberes tradicionais agrícolas. (SENRA; LEÓN, 2009, p. 17-22)
Além dessas, as funções desempenhadas para o cuidado doméstico são igualmente fundamentais para a subsistência dos núcleos familiares camponeses. Apesar de se tratarem de substanciais atribuições, a invisibilização dos trabalhos desenvolvidos por elas tem se mostrado latente.
Segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), no mundo, 70% das mulheres trabalhadoras rurais não têm remuneração, e, contraditoriamente, as mulheres não remuneradas têm carga de horas de trabalho maior que as remuneradas. O não recebimento está atrelado ao trabalho que é realizado dentro da unidade familiar, ou seja, não é contabilizado como trabalho. (MENEGAT; SILVA, 2019, p.136)
Em outras palavras, em decorrência da lógica de acumulação capitalista, a qual determina quais ofícios são dignos de remuneração ou não, as atividades desempenhadas pelas trabalhadoras rurais são desprezadas. Mesmo sendo subjugadas a uma jornada exaustiva de trabalho, que compreende desde o cultivo de alimentos à educação dos filhos, por vezes elas próprias não reconhecem a relevância de seu papel. (IDEM)
Será a partir da tomada de consciência dessas circunstâncias que as mulheres de La Via Campesina buscam o engajamento nas pautas feministas circunscritas ao movimento. Como fontes de sua subalternização, são identificados por elas: (i) o capitalismo neoliberal, o qual perpetua a fome e miséria no campo, aliadas à degradação do meio ambiente; (ii) o colonialismo, que oprime os racializados e despreza o conhecimento tradicional; (iii) o patriarcado, responsável, quer seja externa ou internamente a suas comunidades, por reproduzirem a discriminação e a violência baseada em gênero. (SEPÚLVEDA, 2012, p.75-76)
Nesse contexto, a solução vislumbrada seria não somente o confronto dos três eixos de opressão mencionados, mas também a defesa do acesso à terra e a garantia da segurança alimentar acompanhada da equidade de gênero.
We women demand a comprehensive Agrarian Reform to redistribute land with our full participation and integration throughout the process, ensuring not only access to land, but to all the instruments and mechanisms on an equal footing, with a just appreciation of our productive and reproductive work, where rural areas guarantee a dignified and fair life for us.
(...)
Under the slogan “the food is not an issue of market, but of sovereignty”, we have been defining our sovereign rights to decide and organize the distribution, exchange and consumption of food in quantity and quality according to our possibilities and needs, prioritizing solidarity, cultural, social, health and welfare factors for the Jakarta, Indonesia, 7th of June 2013 benefit of our families and our rural and indigenous communities. (Women of Via Campesina International Manifesto, LVC, 2013)
Para as mulheres do campo, o movimento pela emancipação não é possível apenas por um único viés. O ato de opor-se ao patriarcado não deve ser entendido à parte da exploração material sofrida sob o capitalismo neoliberal, posto que ambos fortalecem-se mutuamente em seu desfavor. (SEPÚLVEDA, 2012, p.78-79)
É interessante destacar que o movimento La Via Campesina tem demonstrado considerável permeabilidade às demandas propostas pelas mulheres. Desde a II Conferência Internacional de Tlaxcala (México, 1996), as pressões exercidas pelo setor feminino resultaram em impressionantes conquistas, especialmente no que diz respeito à distribuição de poderes no seio da entidade. Um marco a ser destacado é a realização da I Assembleia de Mulheres concomitantemente à III Conferência Internacional de Bangalore (Índia, 2000), cuja tradição tem se mantido ao longo dos anos. Outra conquista desse mesmo ano trata-se do estabelecimento oficial do equilíbrio de gênero. (LA VIA CAMPESINA, 2021, p.5-9)
Por fim, é pertinente destacar a tendência mais recente defendida pelas mulheres do LVC: a construção de um Feminismo Camponês e Popular.
Peasant and Popular Feminism is an ideological political construction that differs from other forms of feminism that are urban and conversational. It is “peasant” because it is part of the reality of the countryside and not the city, and it is “popular” because it is a feminism of the “popular classes” (peasants, workers, migrants, agricultural wage earners, indigenous people, people of African descent, etc.) (LA VIA CAMPESINA, 2021, p.28)
O objetivo central dessa particularização do movimento feminista produzido no âmbito do LVC é justamente frisar a condição de especial vulnerabilidade em que se encontram suas membras. Por meio dessa articulação, pretende-se cada vez mais ampliar e integrar as reivindicações das mulheres à agenda geral do movimento, reconhecendo a singularidade da contribuição feminina para esse.
Em síntese, a articulação de mulheres do campo no seio de La Via Campesina encontra bastante ressonância e, portanto, serve como eixo estruturante da agenda internacional de luta da entidade. Ainda que o caminho para que se alcance a plena emancipação camponesa (feminina ou não) ainda seja longo, é interessante analisar a forma pela qual o LVC tem tratado às particularidades de seus adeptos, a fim de se descobrir diferentes padrões e alternativas para a atuação de organizações transnacionais. De mesmo modo, estudar o Feminismo Camponês e Popular é chave para inspirar a formulação de proposições transversais para os desafios que enfrentamos no marco do neoliberalismo.
REFERÊNCIAS:
LVC - La Via Campesina. Managua Declaration (April 1992). Disponível em: <https://viacampesina.org/en/managua-declaration/>. Acesso em: 10 ago. 2021.
LVC - La Via Campesina. Mons Declaration (May 1993). Disponível em: <https://viacampesina.org/en/mons-declaration/>. Acesso em: 10 ago. 2021.
LVC - La Via Campesina. The path of Peasant and Popular Feminism in La Via Campesina. (2021) Disponível em: <https://viacampesina.org/en/publication-the-path-of-peasant-and-popular-feminism-in-la-via-campesina/>. Acesso em: 10 ago. 2021.
LVC - La Via Campesina. Women of Via Campesina International Manifesto. (2013) Disponível em: <https://viacampesina.org/en/women-of-via-campesina-international-manifesto-2/>. Acesso em: 10 ago. 2021.
MENEGAT, Alzira Salete; SILVA, Sandra Procópio. Mulheres camponesas em movimentos: análises da atuação feminina na via campesina, na caminhada para a soberania alimentar. MovimentAção, [S.l.], v. 6, n. 10, p. 130-142, dez. 2019. ISSN 2358-9205. Disponível em: https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/movimentacao/article/view/10660. Acesso em: 10 ago. 2021.
PALÁCIOS SEPÚLVEDA, F. (2012). Movimientos sociales y género: la siembra feminista de La Vía Campesina. Revista Sociedad y Equidad, n.4, p. 65-90, jul. 2012. Disponível em: <https://actascoloquiogiannini.uchile.cl/index.php/RSE/article/view/20943>. Acesso em: 13 ago. 2021.
PINTO, Lucas Henrique. Interdependencia económica mundial y procesos de resistencia campesina en un mundo globalizado: la experiencia de La Vía Campesina Internacional. Revista Perseitas, v. 4, n. 2, p. 260-282, 2016. Disponível em: <https://www.redalyc.org/jatsRepo/4989/498952389009/498952389009.pdf>. Acesso em: 10 ago. 2021.
ROSSET, Peter Michael. La reforma agraria, la tierra y el territorio: evolución del pensamiento de La Vía Campesina. Mundo agrario, v. 17, 2016. Disponivel em: <http://sedici.unlp.edu.ar/handle/10915/55894>. Acesso em: 10 ago. 2021.
SENRA, Lídia; LEÓN, Irene. Las mujeres Gestoras de la Soberanía Alimentaria. In: Las mujeres alimentan al mundo. Soberania alimentaria em defensa de la vida y del planeta. Barcelona: Entrepueblos, 2009. Disponível em: <https://www.entrepueblos.org/publicaciones/las-mujeres-alimentan-al-mundo-soberania-alimentaria-en-defensa-de-la-vida-y-el-planeta/>. Acesso em: 10 ago. 2021.
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