Por: Deborah Lopes
A temática proibicionista sobre os medicamentos e/ou plantas considerados ilícitos começou a se intensificar na década de 1970 encabeçada, defendida e patrocinada pelos Estados Unidos (EUA), este implementou o que ficou conhecido como paradigma proibicionista. Esse paradigma ficou mundialmente conhecido, pois foi chancelado pela Organização das Nações Unidas (ONU) na ocasião da Convenção Única sobre Entorpecentes. Os Estados-parte começaram a militarizar o combate às substâncias ilícitas, por terem comprado o discurso estadunidense de desejo de um mundo “livre de drogas”, dessa forma, as ações estatais serviam para punir as pessoas que produzissem, vendessem ou consumissem “drogas”.
O proibicionismo pode ser compreendido como sendo qualquer atuação dos Estados em relação ao consumo, venda, produção de substâncias consideradas ilícitas (FIORE, 2012). Esse paradigma reformulou o entendimento do conceito “drogas”, uma vez que direcionou a palavra para um conjunto específico de substâncias, as quais possuem um contexto social muito forte, principalmente ao analisarmos indicadores socio-econômicos. Ele estabeleceu limites arbitrários sobre quais “drogas” são consideradas legais e positivas e quais são ilegais e negativas. Pode-se dizer que três substâncias e seus derivados foram alvos desse paradigma: a papoula, a coca e a cannabis.
Conforme salientado, o conceito de “drogas” é um termo político que está contido dentro de uma lógica puritana que avalia certas substâncias como sendo negativas e passíveis de punição. No entanto, o termo tem um significado muito mais amplo que o exportado pelos EUA, a saber: refere-se a qualquer “substância que, quando administrada ou consumida por um ser vivo, modifica uma ou mais funções, com exceção daquelas necessárias para a manutenção da saúde normal” (FIORE, 2012, p.10).
É importante destacar que o proibicionismo não pode ser apenas compreendido pela motivação puritana estadunidense, coexistiram um conjunto de fatores que legitimaram o empreendimento proibicionista dos EUA, como por exemplo a indústria médico-farmacêutica, motivada pelo desejo do monopólio da produção de certos medicamentos e ativos, os conflitos geopolíticos do século XX e o apoio das elites “assustadas com a desordem urbana” (FIORE, 2012, p.9).
Esse paradigma é sustentado, conforme nos mostra Fiore (2012) por duas premissas básicas: i) a criação de um imaginário danoso acerca da substância ilícita, ii) o qual faz com que o Estado ganhe legitimidade para punir quem dissemina o “dano”. A partir da primeira premissa, pelo caráter negativo que o Estado imputa à “droga”, esta se torna digna de proibição reforçando o paradigma. Dessa forma, o país tem obrigação de impedir a produção e o comércio dessas substâncias, assim como reprimir seus consumidores, retroalimentando essa política nociva, sobretudo, às pessoas mais vulneráveis.
A crítica que muitos fazem à essa política tem como base a premissa de que todas as ações humanas geram algum potencial perigo ou dano, logo existem outras demandas e lacunas que geram riscos piores do que os ilícitos e que não possuem tanto esforço político para seu combate. Por exemplo, muitos medicamentos e outras substâncias legais possuem riscos à saúde humana e mesmo assim são permitidos sem muito controle pelo aparato estatal, a esta instituição apenas fica a cargo limitar e regular a produção, mas não seu consumo, passando então a responsabilidade para os indivíduos. Nesta seara, as substâncias lícitas “mais consumidas do planeta [são] as bebidas alcoólicas, as bebidas estimulantes (café, chá e energéticos) e o tabaco (FIORE, 2012, p.12, grifo próprio).”
Segundo Fiore (2012, p.12), “ao proibir a produção, o comércio e o consumo de drogas, o Estado potencializa um mercado clandestino e cria novos problemas”, criando uma rede de comércio paralelo sem nenhum tipo de regulação, que na maior parte envolve exploração de trabalho, contaminação ecológica, corrupção de agentes públicos e a utilização da violência armada para demarcação de zonas de interesse. Dentro dessa lógica, o Estado naturaliza a proibição como sendo a única forma de enfrentar o problema e enquanto elas existirem, essa lógica será retroalimentada. Ao recortar o tema por um viés de gênero, raça e classe, a população mais atingida pela lógica punitivista desse sistema são as mulheres, a população negra e a população mais pobre.
Trazendo esse debate para o Brasil, a polícia usa a narrativa do combate ao tráfico de drogas para reforçar a punição às pessoas mais vulneráveis. A Lei de Drogas, lei de número 11.343, promulgada em 2006, aumentou o poder das polícias ao não especificar a diferença entre usuário e traficante. Apesar de manter a criminalização ao consumidor, ela eliminou a pena de prisão para os indivíduos que são flagrados com substâncias ilícitas. O caráter subjetivo da Lei de Drogas diz respeito ao artigo 28, parágrafo 2º:
“para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente” (BRASIL, 2006).
Infere-se que a lei não cria nenhum critério objetivo quanto a distinção entre usuário e traficante, o que faz com que muitos agentes públicos utilizem da arbitragem para decidir. Essa decisão corrobora com o encarceramento em massa, sobretudo, o encarceramento de mulheres. Ao falarmos sobre as consequências da política de drogas no Brasil, não dá para não falarmos das interseccionalidades que estão presentes e em quais corpos são atingidos: mulheres negras periféricas. Essa narrativa é sustentada pelas inúmeras operações policiais que o Brasil, especificamente no Rio de Janeiro, faz em favelas e complexos habitacionais em áreas “de risco” em nome do combate ao tráfico de drogas.
A estrutura da política proibicionista é também atravessada pelo racismo produzido pelo Estado, essas estruturas são intrínsecas umas às outras. O Estado funciona “a partir de uma lógica colonial que tem como pressuposto a racialização das relações de produção no capitalismo. Assim, é tarefa do Estado a manutenção da colonialidade por meio da atualização de suas formas de práticas genocidas” (NASCIMENTO ET AL, 2019, p.32). Ainda segundo as autoras (p.27) a política de drogas faz parte dessa atualização, e configura em uma estratégia criada “pelo racismo para capitalização do poder de morte sobre a vida, da transformação da liberdade em mercadoria para os complexos prisionais, assim como foi o plantation durante a escravidão”.
Portanto, essa reprodução proibicionista enseja vulnerabilidades significativas na vida das mulheres, sobretudo negras e periféricas. O Estado colonial e capitalista, em sua máxima moral, religiosa e conservadora, reproduz ações que levam essas mulheres a situações de sobrevivência, seja em situações como sendo obrigadas a se prostituir para conseguirem se sustentar, em que, diante do contexto vulnerável, acabam sendo empurradas para o uso de substâncias ilícitas, seja em situações precárias de falta de assistência social, de saúde, de transporte e de oportunidades, em que como já é sabido corroboram para uma intensa deterioração mental ou até mesmo seja em situações de relacionamento abusivo e/ou dependência emocional e financeira dos cônjuges, em que muitas mulheres são forçadas a entrarem nesse comércio paralelo e acabam sofrendo com as consequências.
Essas consequências atingem de forma significativa a vida das mulheres por também serem atravessadas pelo machismo estrutural da sociedade que arrumam meios de produzir preconceitos, exclusões, encarceramentos, violências policiais justificadas e mortes de mulheres negras em massa. A produção de narrativas sobre criminalidade e periculosidade associada à proibição das drogas constitui uma das principais formas do encarceramento em massa de mulheres negras e periféricas (NASCIMENTO ET AL, 2019).
Na pesquisa feita por Cortina (2015), ela constatou por meio de entrevistas de um grupo de mulheres que 65% estavam presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Esse resultado está em linha com o que o Relatório de 2017 do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) sobre o encarceramento feminino constatou. Segundo ele, o crime de tráfico de drogas é o motivo mais frequente das prisões. Ainda de acordo com o estudo de Cortina (2015), ela verificou que mais da metade dessas mulheres relataram histórico de abuso de drogas em algum momento da vida, desemprego no momento da prisão, baixa escolaridade, solteiras, viúvas ou separadas e quase todas possuíam filhos.
O Relatório (BRASIL, 2017, p.31) ainda nos mostra a proporção de mulheres negras privadas de liberdade, 63,55%. Mais da metade das mulheres privadas de liberdade são mulheres negras, assim como 44,42% possuem baixa escolaridade e 58,55% são solteiras. Esses dados reforçam a tese do presente escrito de que há relação entre o proibicionismo e a política militarizada e belicista do Estado que pune, sobretudo, as mulheres. Em uma sociedade machista, esse estigma envolta da mulher privada de liberdade a acompanha durante a vida toda, reforçando o ostracismo dela na sociedade.
Em suma, o custo da proibição de substâncias ilícitas é extremamente alto, não só em termos quantitativos de gastos do aparato estatal para seu combate, como também é alto no sentido dos custos sociais. Existem inúmeros estudos que comprovam a eficácia de diversos ativos usados na elaboração dos ilícitos, assim como muitas plantas eram utilizadas pelos povos originários das Américas, reforçar uma imagem de perigo e danoso à essas plantas, também é reforçar um racismo estrutural do Estado com povos que foram marginalizados durante o processo colonizador. Além disso, os custos sociais impactam diretamente a vida de outras populações marginalizadas como o caso que foi abordado aqui: das mulheres negras periféricas.
A lógica proibicionista sustenta a guerra contra pessoas mais vulneráveis e atinge de forma significativa a vida de mulheres, pessoas pobres e pessoas negras. Ser contra o paradigma proibicionista é ser contra lógica do genocídio de certos corpos em detrimento de outros, e é entender que a proibição das “drogas” vai muito além de uma utopia de “mundo livre das drogas”, perpassa por fatores sociais, econômicos e raciais. Um olhar mais cuidadoso com a temática se faz necessário e precisa ser traduzido em políticas públicas que acolham essa população diretamente impactada pelo proibicionismo.
Referências bibliográficas:
BRASIL, Lei de número 11.343, “Lei de Drogas”, de 23 de agosto de 2006. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2006/lei-11343-23-agosto-2006-545399-publicacaooriginal-57861-pl.html. Acesso em 23 out. 2021.
BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Relatório temático sobre mulheres privadas de liberdade. 2017. Disponível em: http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/copy_of_Infopenmulheresjunho2017.pdf. Acesso em 25 out. 2021.
BOITEUX, Luciana; PÁDUA, João Pedro. La desproporción de la Ley de Drogas: los costes humanos y económicos de la actual política en Brasil. In: CORREA, Catalina Pérez. (Org.). Justicia desmedida: Proporcionalidad y delitos de drogas en América Latina. Ed. Ciudad de México: Fontamara, 2012, p.71-101.
CORTINA, Monica Ovinski de Camargo. Mulheres e tráfico de drogas: aprisionamento e criminologia feminista. Estudos Feministas, Florianópolis, 23(3): 406. 2015. p.761-778.
COSTA, Gustavo Roberto; MARTINO, Isabela R. Laragnoit de. O impacto negativo da política de drogas para populações vulneráveis. Trabalho apresentado no V Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão. Universidade Católica de Santos. 2019.
FIORE, Maurício. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. Revista Novos Estudos, n. 92. 2012. p.9-21.
NASCIMENTO, Adelle; MEDRADO, Benedito; SANTOS, Vivian Matias dos. Raça, gênero, classe e drogas: questões para a psicologia social. In: MEDRADO, Benedito (Org.). Problemas, controvérsias e desafios para a psicologia social. Ed. Abrapso. v.3, 2019. p.18-43.
SESTOKAS, Lucia; OLIVEIRA, Nathália. A política de drogas é uma questão de mulheres. Revista SUR. Revista Internacional de Direitos Humanos, v.15, n.27. 2018. p.153-166.
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