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Não entre em pânico! O Orgulho Nerd e a Política Internacional

por Juddy Garcez


No dia 25 de maio celebramos o Dia do Orgulho Nerd/Geek. Este é um evento internacional e, embora não seja oficialmente um feriado, é um dia no qual podemos celebrar o nosso lado mais aficionado pela cultura geek. A origem da comemoração remonta a três grandes eventos para as fãs de diferentes franquias: para aquelas que gostam de Star Wars, o dia 25 de maio representa a data de estreia do primeiro filme da série, o Episódio IV: Uma Nova Esperança, em 1977; para as fãs da “trilogia de cinco”, o Guia do Mochileiro das Galáxias, a data representa o Dia da Toalha; e, por fim, porém não menos importante, este dia também é conhecido como o Glorioso 25 de Maio, uma homenagem das fãs da série Discworld para o escritor Terry Pratchett. (Sifferlin, 2015; Dahlberg, 2023)

Mas, o que isso tem a ver com Relações Internacionais (RI) ou mesmo feminismo? Bem, da forma como eu vejo a questão, temos diferentes entradas para o tema. Uma delas é a ênfase em seu aspecto financeiro, partindo de uma análise do comércio internacional e como as fanbases ou fandom¹ movimentam um comércio milionário, que vai desde eventos internacionais, como a Comic-Con (Comexland, online), até produtos de merchandising de todos os tipos, oficiais ou não, que configuram parte de um nicho lucrativo. Outras, que argumento serem mais interessantes, podem ter início (1) na virada estética; ou (2) na crítica feminista. É por meio de uma mistura desses dois caminhos que seguirei. 

Com relação a virada estética nas RI, de acordo com Muñoz (2022), ela deriva da vertente pós estruturalista da disciplina nos anos 2000, que aflorou no que conhecemos como Terceiro Debate, ultrapassando o seu caráter crítico epistemológico inicial e assumindo uma agenda mais propositiva a partir de discussões sobre estética. Em resumo, “Esse movimento procura legitimar a estética como nova epistemologia apta a pensar a política mundial, a qual passou a receber o aporte da literatura, das artes visuais, da música e do cinema.” (Muñoz, 2022, p.155) Nesse sentido, as pensadoras da virada estética buscam compreender a discrepância entre a representação e a realidade, um problema que já é tomado, em muitas teorias da disciplina, como resolvido. 

Partindo da ideia de que a representação nunca é neutra, isto é, há um caráter inerentemente político nas escolhas que fazemos enquanto pesquisadoras, Bleiker (2001) argumenta que podemos ultrapassar a barreira entre as esferas pública, entendida como o espaço da razão e da objetividade, e privada, associada ao gosto e a subjetividade. Desse modo, ao pensarmos o Dia do Orgulho Nerd/Geek a partir da virada estética, expandimos as possibilidades sobre a compreensão da política mundial a partir de vieses que vão além do escopo das teorias e métodos mais tradicionais. 

Se partirmos do pressuposto de que obras podem ser políticas, e de que elementos literários, audiovisuais e plásticos etc. podem trazer significado para fenômenos mundiais, regionais e/ou locais tangíveis (ou não), podemos utilizar nossos gostos para analisar cenários que por vezes são de explicação complexa, tornando-os mais facilmente relacionados ao rotineiro. Vejamos, por exemplo, a obra de Cynthia Enloe (2000, 2013). A autora feminista que, com frequência, argumenta em favor das RIs do dia-a-dia, já iniciou seus textos pensando sobre Pocahontas e mulheres fantasiadas de bananas protestando em frente ao prédio de uma organização internacional. Por que não pegar nossos gostos e mobilizar, em uma análise da política internacional, as diferentes lentes que nossas autoras, produtoras, desenhistas etc. usam para o ver o mundo? 

Peguemos, por exemplo, o próprio Guia do Mochileiro das Galáxias, uma das forças por trás da comemoração do dia 25 de maio. Nesta obra, uma “trilogia de cinco”, podemos acompanhar de perto a monótona vida de Arthur Dent, um humano que trabalha em uma estação de rádio e cuja casa está prestes a ser demolida para que uma construtora faça um desvio. Já nas primeiras páginas podemos ver o descaso da Secretaria de Obras do município, responsável pelo desvio, em lidar com um habitante local. O problema, contudo, torna-se mais complexo quando vemos que o mesmo processo está prestes a acontecer em escala universal: o planeta no qual Arthur Dent habitava até então também seria demolido em prol da construção de uma via expressa hiperespacial, projeto liderado pelo Conselho de Planejamento do Hiperespaço Galáctico (Adams, 2010 [1979]). 

Ao vermos esse tipo de narrativa, inicialmente nos parece uma ficção tão irreal que tentar associar Star Wars chega a parecer uma empreitada menos desgastante, ainda que mais óbvia. No entanto, se olharmos para o Guia do Mochileiro das Galáxias como uma oportunidade para (re)pensarmos sobre as fronteiras e o impacto do Estado e decisões de atores políticos relevantes nas vidas de cidadãs e cidadãos, a tarefa torna-se mais densa, ainda que desafiadora. Utilizar uma obra como essa, uma que lida com povos diferentes, em mundos distintos, pode ser um exercício profícuo para refletir sobre os corpos que se amontoam apesar de todas as teorias, para citar Zalewski (1996).

Outros exemplos bem fáceis de serem associados a fenômenos internacionais, como a Guerra, a Paz, a fome, injustiças sociais, construção de Estados, migração, diáspora, holocausto e tantos outros, tocam em séries, filmes, livros, produções musicais e visuais, performances, quadros, pinturas, desenhos, mangás, animes e qualquer outra produção artística que possa ser considerada relevante socialmente. Eu, como boa nerd que sou, não poderia deixar de mencionar também o sucesso One Piece, que se apresenta a partir de diferentes mídias (mangá, anime, live action) e que faz uma crítica social que amalga História, Antropologia, Política, Economia, Sociologia e, claro, Relações Internacionais, ao representar diferentes camadas da Sociedade Internacional, contando inclusive com um sistema de Estados, um Governo Mundial, uma elite político-econômica que controla o Governo, a Marinha (o uso legítimo da força corporificado), e mesmo racismo, xenofobia, etarismo e outras questões que se impõem socialmente (Oda, 2024). 

Tendo esboçado algumas possibilidades sobre o primeiro caminho, avanço agora no segundo: o da crítica feminista. Embora, de fato, eu já tenha mencionado alguns trabalhos nesse sentido, e o termo seja deveras amplo, o que proponho como crítica feminista aqui diz respeito a forma como mulheres que fazem parte de um ou mais fandom são taxadas como meninas e com frequência são ou infantilizadas, criticadas ou mesmo ridicularizadas. Em entrevista a DW, a pesquisadora Victoria Cann afirma que o termo “tietagem” é uma expressão de feminilidade, configurando uma maneira através da qual meninas exploram sua feminilidade e se divertem com isso. Entretanto, tal feito não é valorizado, uma vez que não serve diretamente ao patriarcado. Há, então, uma ridicularização de meninas e mulheres que são fãs e que “tietam”.

"Se a tietagem é aceitável ou não depende muito do fato de o grupo de fãs ser principalmente masculino ou feminino", argumenta Victoria Cann. "Os torcedores de futebol são criticados, mas raramente ridicularizados, por exemplo. No entanto, as tietes de pop são comparáveis aos fãs de futebol: ambos os grupos gastam muito dinheiro em seu time ou banda favorita", diz a pesquisadora. (Hitz; Westholt, 2023, online)

Nesse sentido, por vezes nós, enquanto mulheres nerd, geeks, kpoppers ou o que quer sejamos enquanto fãs, somos taxadas como loucas, histéricas, exageradas, obcecadas, bobas e/ou infantis apenas por colecionarmos cards, irmos a shows, comprarmos roupas e outros produtos de ícones que gostamos, sejam eles pessoas ou obras. No entanto, homens enquanto fãs alucinados de futebol ou outros esportes, bebidas, jogos, filmes, séries etc., vinculados a um ideal de masculinidade, chegam até mesmo a participar de torcidas organizadas que em alguns momentos chegam a cometer crimes, são considerados “homens normais”. 

Assim, embora tenhamos avançado na ressignificação dos termos “nerd” ou “geek”, que há alguns anos ainda era sinônimo de pessoa estranha ou que gostava de “coisa de gente louca”, sendo hoje considerado como um elogio por 66% dos millennials (Restum, 2022), no caso das mulheres fãs quer possam ser consideradas nerds/geeks ou não ainda existe um longo caminho a percorrermos. O que podemos fazer para mudar isso, então? Como qualquer questão que toca em subjetividade, esse problema não é fácil de ser resolvido e não há respostas prontas. O que podemos fazer é pensar em alternativas para combater esse tipo de problema. Pessoalmente, enquanto mulher que se considera uma jovem nerd e que passou a vida toda sendo chamada assim hoje em dia não somente aceito o rótulo, como o abraço de forma positiva. Sim, sou nerd, não apenas com relação aos livros, filmes e pessoas que gosto, porém também academicamente falando. Outra estratégia que adoto é me pronunciar quando vejo piadas sobre o tema, especialmente quando isso acontece com outras mulheres. Por fim, uma última saída é simplesmente ignorarmos e vivermos nossas vidas de forma plena, participando dos nossos famdoms e, claro, tendo orgulho de ser nerd!


Notas


¹ Fandom é a abreviação do termo em inglês “fan kingdom” que se traduz literalmente como o “reino dos fãs”, caracterizando um grupo de pessoas que são fãs de algo em comum, a exemplo de uma série televisiva, artista, grupo musical, filme, livro, anime, mangá etc. O termo fanbase também pode ser entendido nesse contexto, sendo visto como sinônimo em muitos casos.


Referências


ADAMS, D. O guia do mochileiro das galáxias. I v. São Paulo: Arqueiro, 2010 [1979], 156p.


BLEIKER, R. The Aesthetic Turn in International Political Theory. Millennium: Journal of International Studies, 2001, Vol. 30, No. 3, pp. 509-533.


COMEXLAND. Dia do Orgulho Nerd e sua importância para o Comércio Exterior. Online (Site). Disponível em: https://uxcomex.com.br/2023/05/dia-do-orgulho-nerd-e-sua-importancia-para-o-comercio-exterior/. Acesso em: 15 de maio de 2024.


DAHLBERG, S.. Happy Geek Prie Day, Towel Day, & The Glorious 25th of May! Cisco Community (Site). Maio, 2023. Disponível em: https://community.cisco.com/t5/the-break-room/happy-geek-pride-day-towel-day-amp-the-glorious-25th-of-may/td-p/4842935. Acesso em: 15 de maio de 2024.


ENLOE, C. Seriously! Investigation crashes and crises as if women mattered. London: University of California Press, 2013.


_______. Bananas, Beaches and Bases : Making Sense of International Relations. Los Angeles: University of California Press, 2000.


HITZ, J.; WESTHOLD, M. As semelhanças entre tietes de k-pop e torcedores de futebol. DW (Site). Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/as-semelhan%C3%A7as-entre-tietes-de-k-pop-e-torcedores-de-futebol/a-65951536. Acesso em: 15 de maio de 2024. 


MUÑOZ, L. Virada estética e política externa: uma leitura machadiana da identidade internacional do Brasil. Monções: Revista De Relações Internacionais Da UFGD, 11(22), 151–177. Disponível em: https://doi.org/10.30612/rmufgd.v11i22.15070. Acesso em: 15 de maio de 2024.


RESTUM, Y. Nerd/Geek Pride Day: Discover the date’s origin and details of this universe. Zoox Smart Data (Site), Maio, 2023. Disponível em: https://blog.zooxsmart.com/nerd/geek-pride-day-discover-the-dates-origin-and-details-of-this-universe. Acesso em: 15 de maio de 2024.


SIFFERLIN, A. What to Know about Geek Pride Day. Time (Site) Maio, 2015. Disponível em: https://time.com/3895549/geek-pride-day/. Acesso em: 15 maio 2024. 


ODA, E. One Piece vol. 107. Editora Panini: Tamboré, 2024. 


ZALEWSKI, M. All these theories yet the bodies keep piling up: theories, theorists, theorising. In: SMITH, S.; BOOTH, K.; ZALEWSKI, M. (eds). International Theory: Positivism and Beyond. Cambridge University Press; 1996:340-353.



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