por Juddy Garcez
Para aquelas pessoas que tomam parte nos estudos feministas em Relações Internacionais - e até mesmo para aquelas que não - Cynthia Enloe é uma figura conhecida. Com o lema de que “o pessoal é o internacional”, a autora discute, dentre muitos assuntos, o que move, ou ao menos deveria mover, uma pesquisa engajada com a temática de gênero. Em seu livro “The Curious Feminist: Searching for Women in a New Age of Empire”, Enloe nos estimula a ouvir diferentes perspectivas, que por vezes partem das mais diversas fontes. Partindo, portanto, dessa ideia, nesse texto iremos explorar um pouco mais um dos grupos cuja fala é constantemente negada: as mães.
Nesse dia, considerado por muitos como especial, é preciso pensarmos não somente na romantização exagerada da maternidade e do ‘poder’ das mães, mas também qual é o lugar dessas mulheres em nosso campo de estudo. Para iniciarmos esse debate, é preciso definirmos o conceito de mãe. De acordo com Ruddick (1985, p.97, tradução nossa), “o termo ‘mãe’ designa uma categoria social. Mães são pessoas que assumem responsabilidade pelo cuidado infantil e fazem desse trabalho parte regular e substancial de suas vidas trabalhistas.” Essa definição, por vezes criticada por reduzir a maternidade a um simples trabalho, é melhor trabalhada se analisada em conjunto com a proposta de O’Reilly (2014), que compreende a maternidade como uma instituição patriarcal, que é definida e controlada por homens.
Na perspectiva da autora, a maternidade serviria, portanto, como uma forma de reprodução da opressão às mulheres. É por isso que O’Reilly (2014) opta por adotar o termo ‘maternagem’, que diz respeito às experiências de mulheres nesse processo, sendo essas vivências definidas por e centradas nas mulheres, possuindo um grande potencial empoderador. É por isso que, ao longo do texto, adotaremos o termo maternagem, não somente como forma de resistência ao linguajar patriarcal, mas também para demonstrar de onde partimos e o quais sujeitos consideramos relevantes dentro do nosso estudo.
Isto posto, retomando a curiosidade feminista de Enloe, uma pergunta nos vem à mente: onde estão as mães em Relações Internacionais? Há aqui dois caminhos a serem tomados: o teórico e o prático. Caminharemos brevemente pelos dois, acreditando que, após tal processo, o questionamento levantado possa ser respondido. Começando, então, pelo aspecto teórico, é possível observamos que nas teorias de Relações Internacionais, mesmo nos múltiplos feminismos, há pouco espaço para a inserção da temática da maternagem.
Questões de segurança e temáticas econômicas, temas frequentemente debatidos em nossa área, costumam considerar o aspecto humano como um assunto distante, até mesmo delicado. Se observarmos obras clássicas das correntes realista e liberal (e suas vertentes neo), notaremos que assuntos como maternagem e questões de gênero são considerados de segunda ordem, sendo constantemente postos de lado. Contudo, diferente do que se pensa, ao analisarmos estudos pós-positivistas, veremos também que não há menções acerca das mães. Pontualmente, certamente, elas são mencionadas. Em estudos sobre movimentos sociais, especialmente aqueles que tratam da ditadura argentina e das Mães da Praça de Maio, é possível notar a atenção que lhes é direcionada. Todavia, quando se fala de maternidade e maternagem, as questões mais comuns tratam da possibilidade desse processo não ocorrer, permeando principalmente temáticas relacionadas ao aborto.
Assim, como a realidade material é o subsídio da teoria, quando um grupo existe na prática e não nas teorizações, só há um local onde iremos encontrá-lo: na margem. É no esquecimento e no silenciamento de vozes que descobrimos o lugar das mães nas teorias de Relações Internacionais. É na falta de espaço para o debate de suas experiências que seremos capazes de vislumbrá-las. É nesse não-lugar, que além de não considerar as vidas e os corpos dessas mulheres, também oculta as demandas maternas, a necessidade de creche, de saúde pública e de educação de qualidade, a proteção contra a violência crescente e muitas outras necessidades básicas que essas mulheres possuem.
Essa falta de representatividade na academia e de teorização sobre a maternagem escancara diversos problemas da disciplina, dentre eles a capacidade de pensar além de questões consideradas ‘’essenciais” e de adotar diferentes abordagens na análise dos fenômenos internacionais. Um exemplo básico traz consigo uma demonstração clara da importância dos estudos da maternagem em nossa área: ao pensarmos em uma guerra, se as mães tivessem o poder de decisão sobre entrar ou não em um conflito armado que exigisse que seus filhos tomassem parte na ação, novas alternativas de resolução de conflitos certamente seriam buscadas.
Essa reflexão nos traz, pois, a segunda ramificação da nossa análise: o lugar das mães na prática. Em um primeiro momento parece bem óbvio onde elas estão: em todo canto que olhamos há mães. Nos mais diferentes países e regiões. Na maioria das vezes, temos uma (ou mais) dentro de casa. Isso se não formos nós as mães. Entretanto, quando alimentamos esse olhar com o aspecto crítico, notamos que não é tão fácil assim enxergar essas mulheres.
Quando pensamos em buscar essas mulheres no plano internacional, quase que automaticamente somos levados a olhar para a carreira política ou militar: há mulheres mães chefes de Estado? Elas estão em cargos de liderança? Quantas mulheres mães há em nosso exército? É permitido servir militarmente caso esteja grávida? Essas - e muitas outras - perguntas logo aparecem. No entanto, é tirando os nossos olhos dos aparelhos estatais que conseguimos vê-las melhor. É focando nos movimentos sociais, nas articulações de base, nas ações diárias que iremos encontrá-las.
Um exemplo frequentemente citado é o das Mães da Praça de Maio, um grupo que atua na Argentina, ininterruptamente, há 43 anos. Essas mulheres que, na época da ditadura argentina tiveram seus filhos sequestrados (e assassinados) reuniram-se na famosa Praça de Maio a fim de exigirem informações sobre a localização dos seus filhos. Ao pressionarem o Estado ditatorial e conquistarem a mídia, elas tornaram-se ícones da resistência. Ainda há uma vertente do grupo que luta por informações sobre a localização dos restos mortais de seus filhos, havendo até mesmo uma organização das Avós da Praça de Maio, que buscam seus netos. (CASTELLI, 2012)
Outro local onde podemos encontrar as mães em militância ativa é no Brasil. De acordo com Vinícius Santiago (2016), mães que perderam seus filhos em operações da política do Rio de Janeiro nas favelas da cidade participam de atos, passeatas e fazem frente a um Estado opressor, que segue tentando silenciá-las e apagar a memória de seus filhos, bem como culpabilizá-los por crimes muitas vezes não cometidos.
Ainda no Brasil é possível observarmos as Mães de Maio que, segundo Gonçalves (2012), tiveram seus filhos assassinados em maio de 2006 nas periferias paulistas. Segundo a autora, “Eram mães que queriam respostas para as mortes de seus filhos. Num ato inconsciente, sua condição de mães proletárias e subproletárias, as arrastou para a cena política. Sem saber como proceder, por onde ir, começaram a peregrinação em busca de pistas sobre as razões da morte de seus filhos.” (GONÇALVES, 2012, p.139)
Os casos desses três grupos de mães servem somente para ilustrar e resumir a atuação política das mães em diversos cenários. Se feita uma pesquisa mais profunda, mais e mais mães - e outras mulheres silenciadas - serão descobertas atuando onde menos esperamos.
Em suma, nós que estudamos Relações Internacionais, precisamos aprender a olhar para além do Estado e do que muitos consideram “importante”. A importância somos nós, pesquisadoras e pesquisadores, que definimos. Tanto as teorias quanto as práticas são feitas por nós. Que nesse dia das mães possamos, então, olharmos para elas: essas mulheres que fazem tanto por nós, e que na mesma medida são (quase) sempre ignoradas.
Referências bibliográficas
Castelli, N. D. (2012) Conhecendo as Mães da Praça de Maio: ensaio do perfil da associação. Anais eletrônicos do XI Encontro Estadual de História. Universidade Federal do Rio Grande (FURG) - Rio Grande - RS - Brasil
Gonçalves, R. (2012) De antigas e novas loucas: Madres e Mães de Maio contra a violência de Estado. Revista Lutas Sociais, n. 29
O’Reilly, A. (2014) Motherhood Hall of Fame Keynote Speech and introduction into the Motherhood Hall of Fame at the Museum of Motherhood in NYC
Ruddick, S. (1995) Maternal thinking. Boston: Beacon Press
Santiago, V. W. B. (2016) A luta das mães nas favelas: margens, Estado e resistência. Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Instituto de Relações Internacionais.
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