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(Im)possibilidades ontológicas e os direitos femininos aos seus próprios corpos

por Juddy Garcez


“Eu costumava pensar em meu corpo como um instrumento de prazer, ou um meio de transporte, ou um implemento para a realização da minha vontade. Eu podia usá-lo para correr, para apertar botões, deste ou daquele tipo, fazer coisas acontecerem. Havia limites, mas meu corpo era, apesar disso, flexível, único, sólido, parte de mim. Agora a carne se arruma de maneira diferente, sou uma nuvem, congelada ao redor de um objeto central, com o formato de uma pêra, que é duro e mais real do que eu e que incandesce vermelho dentro de seu invólucro translúcido.” (ATWOOD, 2017. p.73)


Iniciamos esse texto com um dos trechos mais viscerais da literatura distópica: um excerto de “O Conto da Aia”, publicado pela primeira vez em 1985 e escrito pela canadense Margaret Atwood. O livro, que problematizaremos posteriormente, concebe uma nação ultra religiosa e conservadora, Gilead, instalada no espaço hoje conhecido como Estados Unidos, após um golpe de Estado pautado em falsas ameaças de terrorismo.


Neste cenário aterrorizante, devido ao decrescimento nas taxas de fertilidade e natalidade, mulheres que já foram mães ou que possuem a capacidade biológica de serem em algum momento de suas vidas são transformadas em incubadoras humanas, forçadas a não somente gestar, parir e amamentar as filhas e filhos de seus estupradores, como também a participarem “voluntariamente” de cerimônias mensais de abuso, e outros eventos considerados religiosos, bem como da rotina da família na qual são forçosamente inseridas. O termo voluntariamente se encontra entre aspas pois a alternativa a tal atrocidade é trabalhar em campos de concentração, recolhendo lixo tóxico e tendo uma morte lenta e muitas vezes dolorosa.


Considerando alguns fatos recentes, como a derrubada dos direitos garantidos a partir do caso Roe x Wade (ANISTIA INTERNACIONAL, 2022), o descaso por parte de profissionais da saúde e da mídia com a artista Klara Castanho na divulgação de informações pessoais sensíveis (BBC NEWS, 2022), o impedimento da garantia de direitos ao aborto a uma menina de onze anos em Santa Catarina (CNN, 2022) que, embora posteriormente tenha conseguido interromper a gravidez, passou por grandes traumas, e a prisão em flagrante do anestesista que estuprou uma mulher grávida durante o seu parto no Rio de Janeiro (NEXO JORNAL, 2022), fica evidente que, o que parecia uma distopia quiçá inatingível em 1985, hoje certamente é contexto quase que certo.


E o que isso tem a ver com nós, internacionalistas? A parte do fato de sermos pesquisadoras, uma das identidades que mais nos define é a categoria “mulher” que, quer queiramos quer não, perpassa condições biológicas, ou corporais. E aqui é preciso fazer alguns esclarecimentos: concordamos com Butler (2018) quando ela afirma que:


(...) não quero dizer que todos escolhemos o próprio gênero e sexualidade. Somos

certamente formados pela linguagem e pela cultura, pela história, pelas lutas sociais

das quais participamos, pelas forças psicológicas e históricas – em interação, pelo

modo como situações biológicas têm a sua própria história e eficácia. (BUTLER,

2018, p.43)


Evidenciado isso, o corpo é, sim, um dos principais espaços de disputa na modernidade colonial. Quando pensamos sobre direitos sexuais e reprodutivos, em especial na América Latina, vemos que “o aborto induzido é amplamente criminalizado e estigmatizado.” (GOMES, 2021, p.13). Reflexo das raízes coloniais, patriarcais e religiosas que se amalgamam no contexto moderno, o sequestro da mulher de seu próprio corpo configura uma impossibilidade ontológica, um impedimento de existência dessa mulher enquanto indivídua detentora de direitos e, fundamentalmente, enquanto pessoa humana.


A perversão deste modelo pode ser melhor traduzida na impossibilidade do exercício de uma maternagem empoderadora por mulheres que já são mães, com o encarceramento de suas decisões e rejeição de seus conflitos por parte do patriarcado (RICH, 1995), simultaneamente aos casos de impedimento ao aborto e culpabilização da mulher que consegue fazê-lo (GOMES, 2021) e o julgamento para aquelas que optam ou por darem seus filhos para adoção (LEÃO et. al, 2014) ou que escolhem não ser mãe (HOAGLAND, 1988).


O que os casos aqui mencionados evidenciam é, portanto, a crueldade do patriarcado, que nos oprime e nos enclausura em um modelo ideal, permeado por uma maternidade que por um lado, é vendida como algo desejável, e por outro, imputada a nós como um crime de traição de nossas capacidades biológicas. O que resta a nós, então, senão uma existência rasa e que não nos pertence? O que fazer com tanto órgão, tanto desejo, tanta impossibilidade?

Infelizmente, não temos as respostas para essas questões. Mas, em certa medida, podemos aprender com o que as lutas históricas nos ensinam. E com mulheres, as mais diversas, que em algum momento de suas existências não somente pararam para refletir sobre esse tema - como acredito que todas nós façamos - mas nos ofereceram suas palavras e sentimentos sobre suas vivências.


Dois são os exemplos que selecionei para esse texto e que podem nos fazer pensar. O primeiro deles é um pequeno artigo escrito pela jornalista Milly Lacombe para a Revista TPM. Em um relato pessoal, a autora comenta sobre como foi crescer com a ideia de que mulheres e homens são entidades sociais díspares. Que enquanto para um é permitido, em um de seus exemplos, jogar futebol sem camisa, para a outra é preciso que se use uma combinação de sutiã e camisa, pois o seio da mulher é sagrado. Tão importante quanto suas reflexões sobre as realidades das mulheres cis, que costumam menstruar pela primeira vez entre os 10 e 15 anos, Lacombe (2022) nos acredita que um de seus maiores aprendizados sobre o corpo feminino se deu com as mulheres trans: “Foi com algumas mulheres trans que entendi que aquilo que eu tentava esconder – meu corpo – elas se orgulhavam de exibir; um aprendizado que vem com riscos, mas também com potências.” (LACOMBE, 2022, s.p.)


Ainda com questionamentos acerca do que é “viver em um corpo de mulher”, Lacombe (2022) nos oferece algumas pistas sobre a realidade corpórea feminina: “O corpo de uma mulher pertence ao estado e aos homens. O estado regula, os homens abusam. O estado oprime, os homens ocupam.” (LACOMBE, 2022. s.p.) Sejamos nós mulheres cis ou trans, brancas, negras, indígenas, católicas, evangélicas, lésbicas, bissexuais, crianças, idosas etc., temos nossos corpos controlados pelo Estado que, como já debatemos em outro momento¹, possui um papel importante na promulgação e reiteração da opressão dos corpos femininos.


A aliança patriarcal-colonial tem a sua tradução no ser Estatal que, embora não seja corporificado como nós, possui aparatos materiais, vivos ou não, o que por sua vez acaba por recortar outros corpos e outras existências, dando continuidade a essa cadeia de construção e endosso. Nesse ponto acredito ser importante retomar o texto de Atwood (2017), que configura a crítica do debate do segundo aporte que separei: o do feminismo negro.


Já se sabe que o feminismo negro avançou em inúmeros debates que a crítica feminista menos específica não conseguiu sequer tratar. Como já comentamos em outra ocasião², as ativistas feministas negras lutam há muitas décadas contra as práticas genocidas promovidas pelos Estados. Ainda assim, ao nos depararmos com um enredo como o proposto em O Conto da Aia, somos levadas a crer que tal narrativa é distópica, ainda que, na prática, para muitas mulheres negras a não pertença aos seus corpos já seja realidade há séculos.


Trago esse exemplo aqui não como uma busca por uma hierarquização opressiva, uma disputa para ver quem é mais oprimido ou sequer para desmerecer a genialidade da obra de Atwood que, de certo modo, está inserida em um contexto bem particular e o considera em determinado grau. O meu objetivo aqui é demonstrar que algumas questões identitárias se sobrepõem o que, em muitos casos, contribui para uma subalternização ainda maior de determinados corpos. A realidade da mulher negra fica nítida em um diálogo feito na série Dear White People entre Samantha White (Logan Browning) e seu namorado Gabe (John Patrick Amedori), “Eu quero que essa branca da ficção seja livre.”. (SNIGURA, 2019)

Assim, buscando amalgamar as (im)possibilidades ontológicas aqui retratadas, e a consequente luta feminina por direito aos seus corpos, retomo aqui o trabalho de Butler

Então, em primeiro lugar e acima de tudo, dizer que o gênero é performativo é dizer

que ele é um certo tipo de representação; o “aparecimento” do gênero é

frequentemente confundido com um sinal de sua verdade interna ou inerente; o

gênero é induzido por normas obrigatórias que exigem que nos tornemos um gênero

ou outro (geralmente dentro de um enquadramento estritamente binário); a

reprodução do gênero é, portanto, sempre uma negociação com o poder; e, por fim,

não existe gênero sem essa reprodução das normas que no curso de suas repetidas

representações corre o risco de desfazer ou refazer as normas de maneiras

inesperadas, abrindo a possibilidade de reconstruir a realidade de gênero de acordo

com novas orientações. (BUTLER, 2018, p.27)


Finalizando, considerando que o gênero é performativo, e que a categorização da “mulher”, em especial daquela que possui as capacidades biológicas para gestar, parir e maternar, possui implicações específicas e cruéis no âmbito patriarcal, a disputa de poder que se dá em torno da arena que é os nossos corpos, só pode ser vencida se abrirmos mão de caber em espaços que não mais nos servem, se questionarmos o status quo social, mas também estatal, e se resistimos. Como muito bem nos disse Atwood (2017, p.53) “Nolite te bastardes carborundorum.”³


Notas

¹ MORON, J. G.; REVERS, L. Por uma construção feminina de Estado. NEFRI (Site). Disponível em: https://www.nefri.org/post/por-uma-construção-feminina-de-estado. Acesso em: 07 jul. 2022.

² CECILIO, G. A luta política das mulheres negras latino americanas e caribenhas. NEFRI (Site). Disponível em: https://www.nefri.org/post/a-luta-política-das-mulheres-negras-latino-americanas-e-caribenhas. Acesso em: 07 jul. 2022.

³ Em latim, “Não permita que os bastardos reduzam você a cinzas.”, expressão utilizada por Margaret Atwood em O Conto da Aia.


Referências Bibliográficas


ANISTIA INTERNACIONAL. USA: Supreme Court decision to overturn Roe v. Wade marks grim milestone in history of the United States. Anistia Internacional (Site), 24 jun. 2022. Disponível em: https://www.amnesty.org/en/latest/news/2022/06/supreme-court-decision-overturn-roe-wade/. Acesso em: 29 jun. 2022.


ATWOOD, M. O Conto da Aia. Editora Rocco, 2017.


BBC NEWS. Caso Klara Castanho: o que pode acontecer com profissional da saúde que divulga dados sigilosos. BBC News Brasil (Site), 27 jun. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61961007. Acesso em: 29 jun. 2022.


BUTLER, J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.


CECILIO, G. A luta política das mulheres negras latino americanas e caribenhas.

NEFRI (Site). Disponível em: https://www.nefri.org/post/a-luta-política-das-mulheres-negras-latino-americanas-e-caribenha s. Acesso em: 07 jul. 2022.


CNN BRASIL. Justiça de SC investiga juíza que impediu aborto de criança vítima de estupro. CNN Brasil, 21 jun. 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/justica-de-sc-investiga-juiza-que-impediu-aborto-de-c rianca-vitima-de-estupro/. Acesso em: 29 jun. 2022.


GOMES, A. C. R. Barreiras para o acesso aos serviços de aborto legal na América Latina e Caribe: uma revisão sistemática qualitativa. Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP. Área de Concentração: Saúde Pública (Dissertação de Mestrado) .Ribeirão Preto, 2021, 92 p.


HOAGLAND, S. L. Lesbian ethics: Toward new value. Palo Alto, CA. Institute of Lesbian Studies: 1988.


LACOMBE, M. Viver em corpo de mulher. Revista TPM, UOL (Site). 29 jun. 2022. Disponível em: https://revistatrip.uol.com.br/tpm/milly-lacombe-viver-em-corpo-de-mulher?utm_source=inst agram&utm_medium=instastorytpm&utm_campaign=milly-lacombe-viver-em-corpo-de-mul her&utm_content=later-27926423. Acesso em: 07 jul. 2022.


LEÃO, F. E. et al. Mulheres que entregam seus filhos para adoção: um estudo documental. Rev. Subj., Fortaleza, v. 14, n. 2, p. 276-283. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692014000200010&ln g=pt&nrm=iso. Acesso em: 04 jul. 2022.


MORON, J. G.; REVERS, L. Por uma construção feminina de Estado. NEFRI (Site). Disponível em: https://www.nefri.org/post/por-uma-construção-feminina-de-estado. Acesso em: 07 jul. 2022


NEXO JORNAL. Anestesista é preso em flagrante por estuprar mulher grávida. Nexo Jornal (Site), 11 jun. 2022. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/extra/2022/07/11/Anestesista-é-preso-em-flagrante-por-estupr ar-mulher-grávida. Acesso em: 11 jul. 2022.


RICH, A. Of Woman Born: Motherhood as Experience and Institution. New York and London: NORTON & COMPANY, 1995.


SNIGURA, M. Dear White People acusa The Handmaid’s Tale de “feminismo branco”, Assista! Handmaid’s Tale Brasil (Site). Disponível em: https://www.handmaidsbrasil.com/2019/08/dear-white-people-acusa-the-handmaids-tale-de-f eminismo-branco.html. Acesso em: 07 jul. 2022.


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