Por Anne Vitória Dornelas Reis
1. CONTEXTO HISTÓRICO
1.1. Japão, Coréia do Sul e China: crise da natalidade, dificuldade de conciliar trabalho e família, e políticas de controle e suas consequências
No Japão, o problema da baixa natalidade tornou-se um dos maiores desafios para o governo atual. Segundo dados do Fórum Econômico Mundial (2023), as taxas de fertilidade caíram drasticamente, colocando o país em uma posição crítica nos rankings globais de crescimento populacional. A tradição confucionista, que ainda nos dias atuais molda a cultura social, continua a reforçar o papel da mulher como cuidadora do lar. Littlejohn (2017, p. 4) afirma que “a distinção de gênero confucionista influenciou a expectativa moderna de que as mulheres tenham filhos e parem de trabalhar quando se casam.” Tais ideias continuam a perpetuar um papel feminino de cuidado ao lar, afastando mulheres da vida profissional e dificultando sua inserção em posições profissionais e de liderança.
Já na Coreia do Sul, a estrutura hierárquica de gênero impõe grandes barreiras para as mulheres que desejam equilibrar a carreira com a maternidade, embora existam políticas de incentivo, como a licença maternidade/ paternidade:
[...] Homens e mulheres têm direito a um ano de licença durante os primeiros oito anos de vida dos filhos. Mas em 2022, apenas 7% dos novos pais aproveitaram parte da licença, em comparação com 70% das novas mães (Jean Mackenzie, 2024, BBC).
Essas políticas ainda são insuficientes para garantir uma participação feminina no mercado de trabalho, e as mulheres continuam sendo as principais responsáveis por tarefas domésticas, enquanto os maridos passam os dias em longas jornadas de trabalho (Boo Jiin, p. 51).
Quanto a China, a Política do Filho Único, e a mais recente Política dos Dois Filhos, moldou significativamente sua dinâmica social. Em um estudo de 2011, a Federação das Mulheres da China revelou que 62% dos homens acreditavam que "os homens pertencem à vida pública, enquanto as mulheres pertencem à família" (Xinhuanet, 2016). Essa visão tradicional, reforçada por políticas governamentais, resultou em um aumento no número de mulheres que optam por retornar ao ambiente doméstico, mesmo com a flexibilização das leis de natalidade. Isto é, mesmo com novas políticas de incentivo à natalidade, menos mulheres estão optando por essa decisão, sendo o alto custo de se ter mais um filho uma das causas. Segundo o Instituto de Pesquisa Populacional YuWa, o custo médio para criar uma criança do nascimento aos 17 anos, na China, é de cerca de US$ 74.800, valor que pode aumentar para mais de US$ 94.500 ao considerar o suporte financeiro até o bacharelado, representando 6,3 vezes o PIB per capita do país (Yeung, 2024).
2. O PAPEL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO ENFRENTAMENTO DA CRISE DEMOGRÁFICA
Uma das abordagens que países como a Coréia do Sul e o Japão têm adotado para enfrentar desafios demográficos é a redução da jornada de trabalho. No entanto, mesmo com essas iniciativas visando diminuir a carga horária, muitas mulheres ainda se deparam com a árdua tarefa de conciliar as demandas do mercado de trabalho às suas obrigações no lar (Chin, 2012, p. 5). Tal dificuldade é amplificada pela persistência de normas culturais que atribuem a responsabilidade do trabalho doméstico quase exclusivamente ao sexo feminino. Essa visão limitada cria barreiras significativas para uma verdadeira transformação nas dinâmicas familiares.
Tabela de indicadores de disparidade de gênero na Ásia Oriental
Fontes: Banco Mundial ; Fórum Econômico Mundial ;The Diplomat.
É crucial que as políticas públicas sejam reformuladas para não apenas incentivar a entrada das mulheres no mercado de trabalho, mas também para promover uma redistribuição mais equitativa das tarefas do lar. Para que possamos reverter o preocupante cenário de declínio demográfico, é fundamental que ocorra uma mudança cultural profunda. Isso significa que os homens também devem assumir seu papel no cuidado dos filhos e nas atividades domésticas, desmontando a estrutura tradicional que ainda prevalece.
Essa discussão vai além do simples aumento das taxas de natalidade ou da participação feminina no mercado de trabalho. Trata-se de garantir que tanto mulheres quanto homens tenham a liberdade de escolher se desejam se dedicar à carreira, à família ou a ambos, sem que essas escolhas impliquem em sacrifícios pessoais ou profissionais. É um desafio que demanda esforços coletivos e uma nova visão sobre os papeis de gênero, entrelaçando a vida pessoal e profissional de forma mais equilibrada e justa.
3. A HIERARQUIA DE GÊNERO E SUAS IMPLICAÇÕES
3.1. O Impacto do Confucionismo na Estrutura Familiar
Conforme discutido anteriormente, as raízes das ideias confucionistas ainda estão profundamente entrelaçadas nas estruturas sociais de diversas culturas do Leste Asiático, exercendo uma influência persistente sobre as dinâmicas de gênero (Achara 2024, p. 143). Essas tradições historicamente condicionaram o papel da mulher, confinando-a majoritariamente ao espaço doméstico e restringindo suas oportunidades de participação plena em diversos aspectos da vida pública. Embora tenhamos testemunhado uma mudança gradual nesse paradigma, as expectativas sociais continuam a moldar a percepção sobre o comportamento feminino, dificultando consideravelmente a inserção das mulheres em papeis profissionais e de liderança.
No contexto das Relações Internacionais, essa lacuna se torna ainda mais evidente. Anne Sisson Runyan e V. Spike Peterson, em sua obra Global gender issues in the millennium (2018), levanta um ponto crítico: a notável ausência de mulheres em posições de poder dentro das esferas de decisão que moldam políticas globais (Runyan; Peterson, 2018, p. 19).
Elas observam que, mesmo quando as mulheres participam dos processos globais, frequentemente isso ocorre em papeis invisíveis ou relegados a uma posição secundária. Essa disparidade não é apenas uma questão de justiça social, mas também uma limitação significativa para a eficácia e a abrangência das políticas internacionais.
De acordo com o Fórum Econômico Mundial¹, um número considerável de mulheres ainda se encontra fora dos setores reconhecidos formalmente, perpetuando uma desigualdade que repercute tanto nas questões de gênero quanto nas dinâmicas de poder global. Essa situação revela não apenas um desafio ético, mas também uma oportunidade perdida na formulação de políticas que poderiam ser mais inclusivas e representativas. A inclusão das vozes femininas nas discussões internacionais não é apenas desejável; é essencial para promover uma governança mais equitativa e eficaz em um mundo cada vez mais interconectado.
[...] A China está em 93,5% de paridade em nível educacional, com paridade total em educação superior. Em Participação econômica e oportunidade, a China fechou 72,7% da lacuna de gênero e atingiu 81,5% de paridade na taxa de participação na força de trabalho. Também garante 11,4% de paridade em Empoderamento Político, com 4,2% de mulheres ministras e 24,9% de mulheres parlamentares. A China continua a ter uma das menores proporções de sexo ao nascer (89%), afetando os níveis de paridade no subíndice Saúde e sobrevivência (93,7%, 145º) (Dataway Horizon et al., 2023, p. 142).
Essa invisibilidade acentua e reproduz a hierarquia de gênero, mesmo em contextos que deveriam defender a equidade entre os gêneros. Chandra Talpade Mohanty (2020)² ressalta que as políticas ocidentais muitas vezes apresentam uma visão homogênea das experiências vividas pelas mulheres do Sul Global, desconsiderando suas realidades multifacetadas (Mohanty, 2020, p. 9). No Leste Asiático, por exemplo, a implementação de políticas de gênero frequentemente ressoa com essa lógica colonial, onde as mulheres são retratadas como vítimas indefesas, despojadas de suas complexidades culturais e sociais. Essa abordagem não só limita a eficácia das políticas, mas também reforça as estruturas de desigualdade de gênero.
3.2 Repercussão nas Políticas Globais
Em um mundo cada vez mais interconectado, as relações internacionais desempenham um papel crucial nesse cenário. As interações entre países e a maneira como as políticas de gênero são discutidas nas arenas internacionais refletem e influenciam essas dinâmicas locais. Assim, ao ignorar as especificidades culturais e as vozes das mulheres do Sul Global, as políticas globais não só perpetuam a desigualdade, mas também podem exacerbar crises demográficas já existentes, como a migração forçada e o deslocamento social (Achara 2024, p. 147).
Portanto, um diálogo mais inclusivo e sensível às realidades locais é essencial para desenhar políticas que realmente confrontem a desigualdade de gênero e promovam mudanças significativas nas comunidades afetadas.
Notas
¹ FÓRUM ECONÔMICO MUNDIAL. Global Gender Gap Report 2023. Disponível em: https://www.weforum.org/publications/global-gender-gap-report-2023/in-full/benchmarking-gender-gaps-2023/. Acesso em: 27 set. 2024.
² Mohanty, Chandra Talpade. Sob olhos ocidentais: feminismo acadêmico e discursos coloniais. São Paulo: Zazie Edições, 2020. Disponível em: [https://zazie.com.br/wp-content/uploads/2024/05/PF_Chandra-Tapalde-Mohanty_Sob-olhos-ocidentais_Zazie-Edicoes_2020-2.pdf](https://zazie.com.br/wp-content/uploads/2024/05/PF_Chandra-Tapalde-Mohanty_Sob-olhos-ocidentais_Zazie-Edicoes_2020-2.pdf). Acesso em: 26 set. 2024.
REFERÊNCIAS
ACHARA, D. Analyzing the gender diplomacy: Exploring strategies, challenges, and implications in international relations. Disponível em: https://oceanianjournal.com/public/media/24042024035516-Gender-Diplomacy.pdf. Acesso em: 27 set. 2024.
CARVALHO, A. A. DE. A fecundidade sob as lentes das preferências reprodutivas: um estudo para o continente asiático. Revista brasileira de estudos de populacao, v. 38, p. 1–7, 2021.
CHIN, M. Demographic changes and work family balance policies in east Asia. Disponível em: https://www.un.org/esa/socdev/family/docs/egm12/CHIN-PAPER.pdf. Acesso em: 27 set. 2024.
Labor force participation rate, female (% of female population ages 15+) (modeled ILO estimate) - China, Japan, Korea, Rep. Disponível em: https://data.worldbank.org/indicator/SL.TLF.CACT.FE.ZS?locations=CN-JP-KR. Acesso em: 25 set. 2024.
LINGLING QIAO, GENERAL MANAGER YUMING ZHI, RESEARCH DIRECTOR ZHUYU YAO, SENIOR PROJECT MANAGER. Global Gender Gap Report 2023. [s.l: s.n.]. Disponível em: https://www.weforum.org/publications/global-gender-gap-report-2023/in-full/benchmarking-gender-gaps-2023/.
LITTLEJOHN, L. J. Confucianism: How Analects promoted patriarchy and influenced the subordination of women in east Asia. Disponível em: https://pdxscholar.library.pdx.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1120&context=younghistorians. Acesso em: 25 set. 2024.
PARSONS, S. How gender inequality is hindering Japan’s economic growth. The Conversation, 17 ago. 2023.
SHAO, J.; LEE, Y. Gender norms and women’s double burden in east Asia. The Diplomat, 29 nov. 2023.
YEUNG, J. China is one of world’s most expensive places to raise children, report finds. CNN, 22 fev. 2024.
二孩政策让中国更多职业女性回归家庭. Disponível em: http://www.xinhuanet.com/politics/2016-02/24/c_1118142363.htm. Acesso em: 25 set. 2024.
第三期中国妇女社会地位调查主要数据报告_中国网. Disponível em: http://www.china.com.cn/zhibo/zhuanti/ch-xinwen/2011-10/21/content_23687810.htm. Acesso em: 25 set. 2024.
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