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Entrevista com Uma Reis Sorrequia

Por Mahryan Sampaio, Isabela Mendes, Letícia Prochnow e Bárbara Gelmini


Descrição: Uma Reis Sorrequia é travesti, geógrafa, cientista, educadora, artista,

poetisa, ativista interseccional e defensora de direitos humanos, em especial das

mulheres e população LGBTQIA. Transfeminista cuir sudaca descolonial.

Graduanda do curso de Licenciatura Plena em Geografia pela Universidade Federal

de São Carlos (UFSCar), campus Sorocaba. Atua com foco nos seguintes eixos

temáticos: sociabilizações escolar de meninos e meninas; violências escolar de

gêneros e sexualidades; território e poder; território escolar; hierarquias e

silenciamentos escolar; territorialidades estudantis; identidades juvenis;

cisnormatividade; heterossexualidade compulsória; marcas da diferença; o fenótipo

do gênero binário; e performatividades dos gêneros.


NEFRI: Pode apresentar pra gente sua trajetória acadêmica e ativista? Como

você se organiza politicamente e para quais campos expande sua militância.


Uma: Eu ingressei na Universidade Federal de São Carlos, campus Sorocaba

(UFSCar-So) no curso de Licenciatura Plena em Geografia no ano de 2015. Em

2014, eu havia sido prounista no curso de Comunicação Social - Publicidade e

Propaganda na PUC-PR. Desisti passado um semestre, prestei o ENEM novamente

naquele final de ano e ingressei no ano seguinte na UFSCar-So. Sou natural de

Sorocaba/SP, portanto, retornei à minha cidade ao final deste processo. Já no

primeiro ano no curso de Geografia, comecei a participar do grupo de estudos de

“Feminismo, Sexualidade e Política (FSexPol)”, e cursei um disciplina com quem

viria a ser minha futura orientadora de iniciação científica e mais tarde de TCC. Em

minha linha de pesquisa pude vincular minha paixão pela geografia aos conteúdos

adquiridos neste grupo de estudos, e assim propus meu tema de IC: “Gênero e

sexualidade sob uma perspectiva territorial da escola”. Naquele ano, fui uma das

200 bolsistas da minha universidade. Ali, comecei a dar meus primeiros passos no

âmbito da pesquisa. Já no segundo semestre após a aprovação da minha bolsa,

com duração de 12 meses, minha orientadora me incentivou a publicar artigos,

publiquei, então, na Revista Composição de Ciências Sociais da Universidade

Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), e também nos anais do II Seminário

Internacional Desfazendo Gênero, que ocorreu em Recife. Realizei dois

intercâmbios com bolsa. No primeiro semestre de 2018 estive na Universidade

Nacional de Córdoba (UNC), Argentina, e no segundo semestre do mesmo ano

estive na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife. Durante minha

experiência internacional me envolvi em projetos de extensão como o “Projeto

Interdisciplinar e Intersetorial de Desenvolvimento e Fortalecimento de Espaços de

Aconselhamento em Direitos Sexuais e Reprodutivos no âmbito da Saúde Pública”,

já em Recife lecionei no Pré-Acadêmico Vestibular Solidário da UFPE como

professora de geografia. No campo ativista e político sou integrante do Coletivo

Mandala, organizo o projeto Nós Diversos (SESC Sorocaba), realizando encontros

de temáticas LGBT e feministas, e sou conselheira da Associação de Transgêneros

de Sorocaba (ATS). Minha militância se expande por temas feministas para além

das questões LGBT, com debates sobre machismo e misoginia, pautas raciais e

quilombolas, direito das pessoas com deficiência, entre outros.


NEFRI: Como você enxerga o movimento transfeminista no Brasil atualmente?

Quais suas principais pautas e desafios?


Uma: Eu compreendo o movimento transfeminista no Brasil de uma forma bem

coesa e coerente com as demandas da população trans e travesti em geral. Apesar

das suas divisões, no sentido organizacional, e apesar dos alinhamentos teóricos

distintos, o movimento caminha em direção a um projeto de humanização das

identidades e das corpas trans e travestis, em busca de dignidade e vida plena.

Creio que as principais pautas giram em torno do reconhecimento da vida dessas

pessoas, da disputa por um imaginário e uma narrativa que nos tornem humanas,

contrariando o imaginário social baseado na monstruosidade e animalidade,

desdobrando-se em hiperssexualização, objetificação e fetichização. O foco principal

do movimento é narrarmos nossas histórias em primeira pessoa e construir outro

marco sobre nossas existências, ao mesmo tempo, resistir a toda brutalidade,

genocídio e extermínio de nossa população. É importante frisar que nós estamos no

país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo, porém não olhamos para

os dados dos boletins epidemiológicos, fornecido anualmente pelo Ministério da

Saúde e ANVISA, e não reparamos que o número de homossexuais e transexuais

mortos em decorrência da AIDS no Brasil é mais de 3000 ao ano, em sua maioria

negros e negras. Para além dos assassinatos, que tem certa visibilidade midiática,

não temos discutido de maneira sensível as questões concernentes às pessoas

trans e travestis vivendo com HIV. Diria que perdemos o foco, direcionando toda

nossa atenção para os assassinatos, e acabamos nos esquecendo de que muitas

meninas contraem HIV, e por muitas violências sistêmicas e institucionais acabam

não acessando o sistema de saúde, vindo a óbito em alguns anos. Em pleno século

XXI, ano de 2020, o Brasil com o maior programa de acompanhamento e tratamento

de HIV, tem uma das taxas de mortalidade mais altas entre a população LGBT. É

uma demanda urgente que os movimentos transfeministas no Brasil não têm se

debruçado. E penso também que acessamos um local de representatividade muito

alto nos últimos anos, embora não seja de uma valiosidade tão grande, já que pode

também ser um tiro no pé, pois existem pessoas trans com visibilidade que não nos

representam, não representam a maioria das pessoas trans e travestis. Todavia,

diria que nos últimos anos as infâncias trans desfrutam de maior segurança e

acolhimento perante a família, escola, e sociedade no geral, decorrente todo o

ganho histórico das últimas décadas, em especial a possibilidade do uso do nome

social na escola e banheiro de acordo com sua identidade de gênero. Nos últimos

anos o STF tomou decisões muito importantes, a mais recente relativa doação de

sangue por pessoas LGBT e seus e suas parceiros/as, o que me dá certa sensação

de progresso. Gosto sempre de frisar que as transgeneridades, transexualidades e

travestilidades foram retiradas do Código Internacional de Doenças (CID) da

Organização Mundial da Saúde (OMS) somente em 2018, enquanto a homo lesbo e

bissexualidade foram retiradas lá em 1990. Esse é o atraso da sigla T com relação à

sigla LGB, quase 30 anos, e penso que hoje ele se mostra muito no acesso à

educação e no acesso ao trabalho, como eu digo: quantas são as pessoas LGB que

possuem títulos, ocupam posições de poder, têm uma renda média considerável e

estável, enquanto as pessoas trans e travestis ainda vivem em contextos de

marginalidade e precariedade, muitas de nós em condição de rua, 90% na

prostituição. Como venho dizendo: não existe e não vemos uma classe média trans

e travesti. Essa é a grande diferença da população T com relação à população LGB.

Tornou-se assim uma demanda muito específica internamente ao movimento

transfeminista o acesso à educação e o acesso ao trabalho, reconhecendo as

conquistas nestes campos, mas também assumindo que ainda falta muito. E digo

por experiência própria, mas também pela convivência com outros meninos e

meninas trans e travestis.


NEFRI: Para você, quais são os maiores obstáculos no processo de inserção e

reconhecimento de mais mulheres transexuais na academia? Isso desafia o

lugar que a sociedade atribui para mulheres trans?


Uma: Os maiores desafios e obstáculos para inserção e reconhecimento das

pessoas dentro da academia perpassam por dois lugares. Um, o velho imaginário de

que pessoas trans e travestis são incapazes de uma racionalização (mente) em

detrimento das emoções (corpo). Somos desacreditadas quando realizamos

pesquisa científica sobre gênero e sexualidade, por exemplo, pois é como se não

estivéssemos tomando a distância necessária do objeto. Não somos neutras, ou

imparciais, assim que não somos pesquisadoras. Eu, por exemplo, enquanto uma

travesti, investigando sobre gênero e sexualidade tem um caráter de que estou tão

envolvida com objeto de pesquisa em si que não estou realizando pesquisa

científica, estaria realizando um relato de mim mesma. A academia possui uma

imensa dificuldade de reconhecer a fragilidade de tais afirmações transfóbicas no

âmbito acadêmico e científico. A título de comparação, é como se o branco

soubesse escrever melhor sobre as pessoas pretas, porque ao ser branca ela não

está envolvida com o racismo, portanto, ela consegue dissertar sobre, sem que isso

passe pelo corpo. Ou seja, tem um status mais racional, é mais científico. No caso

das pessoas trans e travestis construir narrativas sobre as transexualidades e

travestilidade supõe que você está tão envolvida que não é possível fazer ciência.

Ao mesmo tempo em que somos descredibilizadas nessas áreas de produção - das

humanidades, das ciências sociais, da filosofia – por tais apontamentos levantados

acima, se vamos para o campo das exatas, nós somos desacreditadas por sermos

trans e não termos capacidade cognitiva e intelectual para tal. Somos a todo o

momento colocadas em um lugar muito violento e ambíguo. Enquanto geógrafa, eu

fui poucas vezes convidada para falar sobre geografia, pura e simplesmente, sou

majoritamente convidada para abordar temáticas relativas a gênero e sexualidade. É

contraditório e paradoxo. Uma denúncia muito forte é que apenas em 2012 o Brasil

teve sua primeira travesti doutora, a Daniela da Silva Prado, hoje no Canadá, e, logo

em seguida, a Luma de Andrade. Vejamos o quão tardia foi a formação das pessoas

trans e travestis a nível de doutoramento. E perceba também que nossas formações

estão circunscritas as áreas das humanidades, da psicologia, da educação. Áreas,

digamos, dentro daquele senso de que mulheres, e ainda assim mulheres

transexuais e travestis, caminham numa certa direção profissional e acadêmica.

Sinto que seríamos ainda mais hostilizadas se fossemos engenheiras, físicas, etc.,

enfrentaríamos ainda mais barreiras, já que a transfobia é um desdobramento do

machismo, misoginia e sexismo e tais áreas são dominadas por homens. Justifico,

pois, mesmo dentro da geografia sofri mais para fazer debates internos a geografia

física. E já internamente a geografia humana, em muitos momentos, fui questionada

como a figura que representa a classe (LGBT). Por exemplo, ao abordar questões

sobre gênero e sexualidade, sou eu quem devo responder quase que

exclusivamente, pois “eu sou a voz e a verdade na terra!”. Nosso maior desafio e

obstáculo é que nossa intelectualidade e conhecimento, que os nossos saberes

sejam reconhecidos e questionados antes do nosso corpo. Como costumo dizer: se

até hoje eu nunca pude dar aula de geografia, é porque mesmo que eu entre em

sala de aula e não fale sobre gênero e sexualidade, eu estou autorizando uma

criança LGBT que ela seja o que ela quiser ser, eu estou represento uma potência

de vida, uma possibilidade de existência. A minha identidade e meu corpo chegam

antes que minha intelectualidade e conhecimento, então antes que eu fale o que é

uma montanha, ou o que é um vulcão, vão me indagar sobre o meu nome, o meu

corpo, o meu cabelo, a minha roupa, a minha transiçã. E eu nunca vou poder falar

sobre o que de fato eu sei falar. A sensação é que terei sempre que ficar me

justificando e narrando um mito de origem, de quando nasci, porque sou assim, de

onde eu venho, sem nunca poder falar sobre os assuntos que me formei para falar.

É uma perda muito grande, lastimável, deplorável, mas é o que de fato acontece.

Obviamente, que isso desafia, rompe e destrói com toda uma narrativa que

circunscreve a identidade e o corpo trans como um “corpo disponível para o outro”.

Se observarmos em uma perspectiva histórica, as mulheres trans e travestis

estiveram quase que exclusivamente circunscritas em um contexto de prostituição.

Pouquíssimas vezes observamos pessoas trans e travestis que romperam com tal

imposição, são exemplos muito pontuais, em que houve uma ruptura com tal

marcação social da diferença. Em nenhum momento, nem a minha família, nem os

meus professores, ninguém esperava que eu chegasse tão longe, ou que qualquer

uma de nós chegasse tão longe. As pessoas têm se acostumado cada dia mais a

nos ver em certos locais e espaços, que até pouco tempo nos era negado, ainda que

em um processo muito complexo. Por exemplo, na minha breve experiência dentro

da universidade, lidei de uma forma bastante negativa com o fato deu alcançar

certos lugares que os meninos não alcançavam. Sinto que gerava um sentimento

de: “como ela consegue, com todas as dificuldades que ela tem?!” Não é um

sentimento declarado, é algo velado, mas é o que eu digo, não temos outras

oportunidades. Entramos na universidade como se fosse a nossa única chance. Não

damos bobeira. Não estamos ali brincando. E sofremos muito durante todo nosso

processo de formação. Nós hackeamos o sistema, mas o sistema nos hackeia

também. Estamos ali buscando melhores condições de vida, e nessa busca vamos

morrendo aos poucos diante várias atitudes transfóbicas, numa tentativa de um dia

superá-las. Mas ao terminar você já não sabe se está viva ou morta, já que passar

pela universidade enquanto uma pessoa trans ou travesti é um processo

extremamente árduo e doloroso. Durante a graduação eu tive uma amiga travesti e

preta no curso de geografia. Ela desistiu. Eu segui. Além da transfobia, ela teve que

lidar com o racismo. E eu vi outras pessoas trans e travestis desistindo também. O

que é muito comum, estamos ali querendo mudar de vida, mas ao mesmo tempo

estamos perdendo vida diariamente, ao ter que ir a aula e lidar com vários

comentários, olhares, investidas, assédios, etc. Eu não sei até que ponto a

universidade é interessante para as pessoas trans e travestis, porque é um jogo de

vida ou morte. Tem que ser muito forte para suportar toda a violência contra nossos

corpos que a universidade carrega, e não sei vale a pena para chegar ao final e

dizer: “sobrevivi!” Não existe vida para as pessoas trans e travestis dentro das

universidades. Por maiores avanços, o sistema escolar institucionalizado, escolas e

universidades, não foi concebido em nenhum sentido para acolher nossas

existências. Os professores não estão preparados, os alunos não estão preparados.

Acabamos por trilhar um caminho bastante largo, extenso e demasiado cansativo.


NEFRI: Como ativista, geógrafa, educadora, artista e cientista, quais são suas

maiores inspirações? E quanto a inspirações literárias, quais obras você

indica para quem quer estudar sobre questões de gênero na geografia e nas

relações internacionais?


Uma: Minhas maiores inspirações são minha vó, minha mãe e minha irmã. Minhas

figuras de representação de feminilidade, no sentido de fortaleza, resistência e de

sobrevivência dentro de uma cultura machista, misógina e sexista. O pouco que sei

da história da minha avó, que casou com o tio dela, assumindo a criação das

enteadas, e sofreu porque desconfiavam que ela traísse a tia com o meu avô. Teve

abortos entre todas as suas três gestações, era uma gestação e um aborto. Sou

incapaz de imaginar a quanto afetou o psicológico dela. Minha mãe vem de uma

família pobre, do interior do Paraná, de ascendência indígena e preta, casou-se

ainda menina com um homem branco que teve uma relação colonial de domínio

sobre seu corpo. Teve uma filha passado 15 anos do meu nascimento com um

homem que assumiu minha irmã somente no papel. São gerações carregadas de

muita violência, mas, ainda que diante todo um contexto de adversidades, foram

elas as mulheres que me transmitiram o mínimo necessário para acreditar no poder

da educação. E para além delas, minha inspiração parte de todas as meninas trans

e travestis que vieram antes de mim, é um reconhecimento de que para eu estar

aqui hoje tiveram que existir outras. E se eu estou aqui hoje, é para as meninas que

estão por vir. Para que eu pudesse conquistar tudo o que conquistei elas tiveram

que vir antes de mim. E não é sobre nomes, mas coletividade. Não é sobre a figura

de uma menina, de uma travesti específica, mas o conjunto de corpos que elas

formaram na década de 60, 70, 80, 90 e 2000. Se fosse para citar uma figura em

específico, eu citaria a Lohana Berkins, uma travesti argentina, líder e pioneira do

movimento trans e travestia argentino. No caso brasileiro, eu citaria a Keila Simpson,

atual presidenta da ANTRA. Em relação às recomendações literárias, toda a obra da

Lohana Berkins, ainda não compilada. Quanto à geografia, todo o conteúdo

disponível na Revista Latino-Americana de Geografia e Gênero, vinculada ao Grupo

de Estudos Territoriais da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), na figura

da Joseli Maria, geógrafa brasileira especialista na tamática. No âmbito

internacional, a Doreen Massey, geógrafa britânica, com estudos bastante

interessantes sobre geografia feminista e cartografia do corpo. Por último, todo o

arcabouço teórico a respeito do conceito de corpo-território cunhado por geógrafas,

nem sempre de formação. São mulheres campesinas pertencentes ao movimento

ecofeminista latino-americano. Dentro das Relações Internacionais eu não saberia

citar alguém específico, pois não é minha área de pesquisa e atuação. Para além da

academia, gostaria de citar a Amara Moira, doutora em literatura pela UNICAMP.


NEFRI: Como você vê o impacto das fake news e dos discursos de ódio por

parte de autoridades públicas na luta trans brasileira?


Uma: Eu enxergo e analiso com muita fúria, mas simultaneamente com muita

cautela. Temos exemplos recentes de políticas de institucionalização da transfobia,

como o projeto de lei para banir pessoas transexuais das práticas esportivas dentro

do Estado de São Paulo. Após o meu processo de visibilização e corporificação

enquanto uma travesti, como uma ex-atleta, abandonei a prática esportiva ainda que

de modo recreativo e lúdico, por não me sentir acolhida em nenhum lado. Com os

meninos me sento deslegitimada. Com as meninas me sinto violentada. Na arte, a

censura em torno da figura da Renata Carvalho com as peças "O Evangelho

Segundo Jesus Cristo, a Rainha do Céu" e “Manifesto Transpofágico”, são outros

exemplos e desdobramentos de um forte discurso midiático que influencia tal

postura. Recomento veementemente o documentário da Netflix “A Revelação”, ele

traz uma análise de conjuntura e um apanhado histórico sobre a representação das

pessoas trans e travestis na mídia, construindo uma narrativa em primeira pessoa

sobre o assunto. Ao analisarmos as telenovelas brasileiras, percebemos que desde

o surgimento da televisão na década de 60, a representação de personagens trans e

travesti é interpretada por de homens cisgêneros, um lugar de extrema violência,

reforçando uma estrutura transfóbica com relação aos nossos corpos e identidades.

Todos os discursos de ódios e fake news são produzidos dentro deste mesmo

campo. A maioria das pessoas que falam sobre nós não nos conhece e nunca teve

contato com uma pessoa trans e travesti. E digo com propriedade, como educadora

e ativista em meu campo de atuação geralmente sou a primeira, a única, ou uma

das poucas travestis que eles tiveram um contato cara a cara, e sinto o quanto tal

iniciativa rompe com um pré-concento imposto a alguém que não nos conhece, mas

que nos antecede. Eles escutam tanto falar de nós que mentiras contadas mil e uma

vezes se tornam quase verdades. Contudo, ao me conhecerem ainda que

brevemente, existe a criação de uma humanidade quase que instantânea com

relação aos nossos corpos e identidades. Eles conseguem reconhecer que sou

como eles, para além do que nos diferencia. Acabam por reconhecer que pessoas

trans e travestis são muito mais do que houvem por aí. Os discursos de ódio e as

fake news, tal qual a violência transfóbica por meio de uma narrativa sobre pessoas

que eles desconhecem produz e reproduz, retroalimentando um sistema muito

antigo. Toda essa difusão e disseminação gera um impacto extremamente negativo

sobre nossas vivências. Enxergo todo esse movimento com muita fúria, é algo que

venho combatendo em todas as minhas ações, perpassando as minhas relações

pessoais e políticas. Enquanto eu existir, irei lutar contra o CIStema. Como digo a

minha mãe: tu não necessita me apresentar para suas amigas como a “filha trans”,

sou sua filha, e basta. Quando elas acabam por me conhecer, quebro com todo o

estigma que cerceia - um processo contínuo de desumanização e barbárie em

relação ao meu corpo. Falo desde um local de muito privilégio, reconhecendo que

muitas vezes não sou respeitada pelo que sou, mas pelo que represento: uma

travesti intelectual com certo trânsito social. O respeito é pelas coisas que conquistei

sendo quem sou. É muito pouco, mas é algo valioso, por um lado me sinto

protegida, e por outro faz com que eu consiga dialogar e ser escutada, podendo falar

com todas essas pessoas sobre as potencialidades da nossa existência.

Negociando de igual para igual. Eu tampouco quero ser reconhecida pela minha

transexualidade. Não quero ser conhecida como uma pessoa trans que venceu

dentro de um processo de dificuldade e vitimização. Quero ser reconhecida pelo que

de fato eu fiz e produzo, e não por aquilo que me faz ser igual a todo mundo. Ao

mesmo tempo em que tento explicar minha identidade, as pessoas cis também têm

que explicar as delas. Estamos sempre refletindo sobre quem somos, porque somos

e de onde viemos, e isso é uma violência muito forte. As pessoas cis, brancas, não

deficientes nunca pensam sobre quem elas são. Este é o impacto de uma violência

simbólica, psicológica e emocional muito grande, sempre somos vistos como

inferiores a alguém porque nunca podemos ser como eles.

NEFRI: Na sua visão, o que poderia ser feito para estimular um ambiente

acadêmico mais inclusivo? E como pressionar as instituições acadêmicas

para a promoção de bolsas de estudos para as minorias, por exemplo?

Uma: Creio que temos muito a aprender com as conquistas históricas do movimento

preto com relação às cotas raciais. O processo de luta por cotas para pessoas trans

e travestis no ensino superior é uma medida paliativa que não resolve o todo, mas

tem potencial para criação de uma expressiva representatividade numérica nas

universidades. Todavia, somente entrar não é o suficiente. Como aluna da UFSCar

participei do processo de criação da Secretaria Geral de Ações Afirmativas,

Diversidade e Equidade (SAADE). E reconheço a importância de termos secretarias,

pró-reitorias e coordenações que engessem políticas de direitos afirmativos as

nossas demandas na graduação e pós-graduação. É fundamental discutirmos

questões de permanência estudantil no que tange à população LGBTQIA+. Para

além das cotas que facilitam o acesso, é primordial pensarmos em uma formação

continuada, considerando fatores como o respeito do uso de nome social, relação

com professores, acolhimento, políticas de saúde pública internas à universidade,

entre outros. Durante minha estadia na Argentina pude me aproximar da construção

de uma política nacional de cotas trabalhistas para pessoas trans e travestis dentro

dos órgãos públicos municipais, estaduais e federais, que se iniciou como uma

experimentação dentro das universidades. Aos poucos, espaços universitários foram

cedendo seus postos de trabalho para pessoas trans e travestis, ganhando grandes

proporções nas universidades federais. Dessa maneira, projetos para inclusão de

pessoas trans e travestis foram aprovados depois pelos governos. Uma observação

importante e necessária: as pessoas transexuais e travestis deveriam ter postos de

trabalho em locais de visibilidade. A implantação de um experimento similar no Brasil

seria interessante. Não adianta termos uma política de acesso sem uma política de

permanência, ou um setor público e privado que não nos acolhe depois de

formadas, pois não foram humanizadas para nos receber. Penso que o resultado

seria expresso pelo aumento de pessoas trans voltando para a universidade e se

formando como doutoras, atuando na área da educação. Ao ter professoras e

mentoras transexuais e travestis, podemos construir outras narrativas mais

humanizadoras dos nossos corpos e identidades. Em relação às pressões, creio que

só poderão ser impostas para além da sociedade civil organizada se tivermos apoio

da elite intelectual das universidades. Mais do que pressão estudantil, devemos

construir pontes e termos aliados dentro da academia, como professores e técnicos

administrativos, que possuem grande influência e peso no processo de votação e

implementação de cotas e bolsas. Movimentos sociais sozinhos não mudaram a

situação, e já estamos em 2020. A estratégia tem que mudar urgentemente e a

pressão deve ser direcionada para o âmbito acadêmico. Não é um processo fácil, as

burocracias envolvem votações e eventuais derrotas e ganhos, mas toda revolução

tem começo.

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Fabrício Barros
Fabrício Barros
Nov 21, 2022

A Daniela não é travesti. É uma mulher trans. E seu doutoramento data de 2011 e não de 2012.

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