Por Isabela Mendez e Cecília Vianna
A Venezuela do século XXI é retratada na mídia como um país ditatorial, que não tem apreço algum aos direitos humanos, governada por um autocrata. O país entrou no foco da imprensa novamente em 2024, devido à recusa de Nicolás Maduro de entregar as atas das eleições e comprovar uma vitória limpa. De fato, Maduro demonstrou repetidas vezes que não tem os direitos humanos como foco de seu governo, o que é instrumentalizado pelos Estados Unidos para ganhar simpatia e legitimidade da comunidade internacional. Mas muito se engana quem pensa que a potência do Tio Sam realmente se importa com a população venezuelana. Pelo contrário: há um histórico de interferência militar e política na América Latina desde pelo menos o século XIX, com interesses puramente geopolíticos e econômicos, às custas da democracia e liberdade dos povos sul-americanos.
Para entender melhor essa questão, faz sentido começar com Eduardo Prado (2003 [1894]), que dedica um livro inteiro à interferência dos EUA na América Latina em seu século, utilizando a Doutrina Monroe para embasar suas críticas. Segundo referida doutrina, os Estados Unidos considerariam qualquer tentativa de interferência das potências europeias na América Latina como ameaça à sua segurança. Não interviriam a favor da independência da região, mas se os países que já haviam se desvencilhado do controle europeu fossem vítimas de intervenção de suas antigas metrópoles, isso seria uma ameaça direta aos interesses norte-americanos. Apesar de as nações latino-americanas haverem interpretado as palavras de Monroe como uma promessa de aliança, o que realmente ocorreu foi uma reivindicação de seu lugar como hegemon regional, e não como defensor da América (um continente) contra a Europa.
Essa questão da América para os americanos, interpretada como um grito anticolonialista, foi, segundo Prado (2003 [1894]) esclarecida pelo então Secretário de Estado dos Estados Unidos, William M. Evarts: América para os americanos, sim, mas americanos do norte. Assim, seria apenas uma questão de tempo até que a bandeira dos Estados Unidos se estendesse do polo norte ao polo austral, intenção que pode ser observada com a anexação do Texas e as tentativas de conquista da América Central. Outro exemplo é a imposição da manutenção da escravidão no continente, não recebendo bem a Revolução Haitiana e impedindo a independência de Cuba, bem como de qualquer outro país que tivesse pretensões de abolir essa prática tão lucrativa e cerne da política externa dos Estados Unidos na época, apesar de ser grande defensor dos direitos humanos atualmente. Curiosamente, apenas em países não aliados.
A Venezuela, imersa em guerras civis e instabilidade política, foi logo afetada pelos yankees, adotando suas leis e instituições liberais (Prado, 2003 [1894]), assim como os demais países da região. Porém, com a descoberta das jazidas de petróleo no início do século XX, os EUA passaram a dar mais atenção a esse território, o que por um lado é positivo, à medida em que garantiu à Venezuela poder de barganha durante a Segunda Guerra Mundial para oficializar acordos pouco favoráveis ao vizinho do norte, mas, por outro lado, deixa o país em posição de extrema dependência e opressão, caso tome qualquer atitude que prejudique os interesses estadunidenses.
Sob o governo de Medina Angarita (1941-1945), a Venezuela exerceu com sucesso uma política externa pragmática, buscando obter benefícios tanto do Eixo quanto dos Aliados. A importância do petróleo venezuelano contra os nazistas forçou Washington a aceitar a Lei de Hidrocarbonetos, que aumentou os impostos sobre a produção de petróleo para os estadunidenses e britânicos; estratégias protecionistas nas importações; o estabelecimento de uma cota fixa de café a ser comprada pelos Estados Unidos, além de colaboração bélica. Todos esses acordos se devem ao fato de que as reservas venezuelanas eram uma fonte mais segura de petróleo, material fundamental na guerra, uma vez que, em virtude da proximidade geográfica, havia menos chance de sofrerem os ataques da marinha alemã (Valente, 2024).
Já entre 1960 e 1970, durante a Guerra Fria, a Venezuela se configurou como um dos principais parceiros comerciais dos Estados Unidos, pois havia o interesse de impedir o acesso dos soviéticos às jazidas de petróleo. Assim, o país contava com governos conservadores que atendiam aos interesses norte-americanos (especialmente econômicos, no plano doméstico), com ideias progressistas ainda muito incipientes. Isso fez a Venezuela evitar uma intervenção militar, conservando uma democracia neoliberal, diferentemente do restante dos países da América Latina, que sofreram golpes de Estado impulsionados pelos EUA para conter o avanço do socialismo no continente (Salgado, 2015).
Porém, na década de 1980, a Venezuela não conseguiu escapar das crises inerentes ao neoliberalismo, sendo afetada pelo aumento da dívida externa e o mal gerenciamento de recursos pelo poder público. A solução encontrada para combater o mal do neoliberalismo foi mais neoliberalismo: uma política de austeridade fiscal do Fundo Monetário Internacional (FMI), isto é, a diminuição dos gastos públicos e do Estado. No entanto, conforme explica Chang (2004), as instituições que hoje regulam as trocas comerciais e proíbem o protecionismo estatal, sequer existiam quando os países ricos se desenvolveram. Assim, é possível identificar a estratégia de “chutar a escada”, perpetrada pelos países do norte em relação aos países do sul global, para que não usem dos mesmos artifícios que aqueles usaram. A Venezuela, que já estava em uma relação assimétrica com os norte-americanos, exportando uma commodity, cujo preço é definido pelo mercado internacional, em troca de bens industrializados com maior valor agregado, ao aderir às políticas do FMI, apenas prolongou seu subdesenvolvimento e subordinação aos Estados Unidos.
Essa política de austeridade gerou grandes revoltas no país, que desde 1970, sob o governo de Andrés Pérez (1974-1979), já não estava mais totalmente alinhado aos EUA em suas relações internacionais. Utilizando o pragmatismo aplicado em sua política externa durante a Segunda Guerra, a Venezuela restabeleceu relações com seus vizinhos, bem como se aproximou de países socialistas, buscando protagonismo no Movimento dos Não-Alinhados. Ao exercitar sua autonomia na política externa ao mesmo tempo em que sofria as pressões internas oriundas das crises do sistema imposto pelos norte-americanos, possibilitou-se a ascensão de um líder com ideias progressistas, que, apesar de não negligenciar o capital internacional, buscaria dar atenção às demandas sociais e promoveria reformas que em nada conversavam com os interesses estadunidenses. Foi nesse contexto de crises econômica, política e social, que Hugo Chávez foi eleito pela maioria popular, em 1998 (Valente, 2024).
A importância do petróleo venezuelano para a modernização do país
A modernização da Venezuela foi possibilitada através da renda do petróleo aliada à vontade política para enfrentar as petroleiras estrangeiras, para distribuir renda e para enfrentar a elite do país. Após a ditadura de Marcos Pérez Jiménez, os atores políticos chave acordaram em constituir um Estado baseado no sufrágio universal. Entretanto, também se propuseram a respeitar os interesses corporativos. Foi desta forma que nasceu o modelo de Punto Fijo, que vinculava que vinculava o nacionalismo petroleiro, à modernização do país e à democracia.
Em 1976, as petroleiras foram nacionalizadas e foi lançado o plano de industrialização do governo Pérez. Tal plano falhou e culminou na desvalorização do bolívar (moeda venezuelana), em 1983. Depois de 1993, os desafios ao modelo Punto Fijo envolviam os movimentos sociais e a classe operária, além da classe média, dos executivos petroleiros e dos militares. Em paralelo a este contexto econômico, politicamente, enquanto Pérez estava no poder, Chávez já conspirava com a classe militar, logrando apoio da população mais pobre da Venezuela, em um primeiro momento. Apenas mais tarde, arquitetou o golpe. A conspiração militar proposta por Hugo Chávez resultou em um golpe durante as eleições de 1988 e, assim, o chavismo chegou ao aparato do Estado. Contudo, além da promessa de uma democracia mais participativa e de defender as necessidades dos pobres, também havia a preocupação em destruir as velhas instituições políticas. A partir de 1999, a popularidade do presidente começou a cair e em 2002 ele parecia vulnerável a um golpe. O plano da oposição era conter Chávez e demandar sua renúncia.
Importante salientar que a base do chavismo e sua política eram profundamente entrelaçadas com a dependência da economia venezuelana do petróleo e com a promessa de, a partir da riqueza advinda deste hidrocarboneto, modernizar e redistribuir renda para a população mais vulnerável. O contexto histórico do "chavismo" se forma, então, a partir da longa trajetória do país no manejo dos recursos petroleiros e das tentativas de transformar essa riqueza em progresso social e econômico, enfrentando tanto a elite econômica nacional quanto interesses internacionais.
Após a queda da ditadura de Marcos Pérez Jiménez em 1958, a Venezuela tentou consolidar uma democracia estável com o chamado modelo de Punto Fijo, que incluía a nacionalização do petróleo e a modernização. No entanto, a dependência do petróleo foi chamada de "maldição" por especialistas, especialmente com o fracasso de um plano de industrialização nos anos 1970. Nos anos 1980, o governo de Carlos Andrés Pérez enfrentou pressões econômicas e desvalorizou o bolívar ao aceitar um ajuste estrutural em 1989, causando crise e pobreza.
A insatisfação com o modelo de Punto Fijo e suas elites políticas levou à formação de três setores descontentes: movimentos sociais e classe trabalhadora; classe média e empresários; e o setor militar. Hugo Chávez, então tenente-coronel, tentou dois golpes de Estado em 1992 e, ao ser libertado, se tornou um ícone para aqueles que ansiavam por mudança. Sua promessa de uma "revolução bolivariana" conquistou apoio de amplas camadas da população em 1998. Ao assumir o poder, Chávez iniciou um projeto de reforma política e social em oposição direta ao legado neoliberal.
Chávez, ao assumir, prometeu uma democracia participativa e políticas de redistribuição para enfrentar a pobreza. Ele reformou o setor petroleiro, decretando que o Estado mantivesse uma parcela majoritária nas companhias subsidiárias. Isso gerou atritos com a PDVSA, onde executivos defendiam uma abordagem pró-mercado e a saída da Venezuela da OPEP.
No início dos anos 2000, as críticas e protestos contra Chávez aumentaram, com uma tentativa de golpe em 2002, que não obteve sucesso. O governo utilizou o apoio de organizações populares, como os “Círculos Bolivarianos”, para mobilizar a população a seu favor. Ao mesmo tempo, sua política internacional incluía uma visão anti-imperialista e alianças com países como Irã e Líbia, o que gerou tensões com os EUA.
A partir de 2006, após reeleição, Chávez implementou o socialismo bolivariano, centralizando o poder e debilitando as instituições de controle. Embora tenha proposto uma reforma constitucional para instituir o "Estado comunal", a população a rejeitou em plebiscito em 2007. Isso não impediu que encontrasse maneiras jurídicas de moldar o Estado à sua visão, com uma crescente dependência do petróleo e baixa institucionalidade democrática.
Com a crise financeira de 2008 e a queda dos preços do petróleo em 2009, a economia venezuelana se fragilizou. A crise econômica, combinada com uma maior centralização de poder e repressão à oposição, exacerbou a divisão cultural e social, com um chavismo cada vez mais isolado internacionalmente e apoiado por camadas empobrecidas que viam no controle estatal do petróleo uma esperança para sair da pobreza.
Relações Brasil-Venezuela
As relações diplomáticas entre os dois Estados foram estabelecidas desde o século XIX, tendo como marco o Tratado de Limites e Navegação Fluvial de 1859. No entanto, foi só a partir de 1979 que os vínculos entre os dois países se intensificaram, possibilitando o firmamento de 71 acordos até 2009.
O distanciamento observado entre os dois países nos primeiros 120 anos de relações diplomáticas se deu, segundo Nunes (2011), devido às prioridades distintas, explicadas pela divergência em suas agendas econômicas, bem como pela dificuldade de transporte entre os dois, visto que a Amazônia atuava como uma barreira física. Além disso, com a descoberta de petróleo na Venezuela, seus governantes enxergaram uma oportunidade de se aproximar dos países centrais, como seu fornecedor de energia, o que a distanciou cada vez mais de seu entorno geográfico, tornando-a dependente dos Estados Unidos, em uma relação de troca assimétrica.
Tendo grande influência da potência norte-americana, a Venezuela aceitou e reproduziu suas instituições e sua democracia neoliberal. No início de 1959, por exemplo, foi adotada a Doutrina Betancourt, que defendia a democracia e os direitos humanos, bem como não reconhecia regimes estabelecidos pela força. Foi por esse motivo que em 1964, houve o rompimento das relações diplomáticas com o Brasil, que, assim como vários países da região, estava passando por um período de ameaça ao "Estado de Direito" - ditadura. As relações somente foram restabelecidas em 1966, quando a Venezuela passou a flexibilizar a Doutrina Betancourt e sua política externa.
Com a ascensão de Carlos Pérez em 1974, o país passou a ter uma política externa mais pragmática, de modo a investir na integração regional e no desenvolvimento interno, distanciando-se dos EUA ao nacionalizar suas indústrias estratégicas, como a do petróleo. Além disso, juntou-se ao Movimento dos Não-Alinhados e defendeu a criação do Sistema Econômico Latino Americano (SELA). Assim, fica evidente a mudança na política externa venezuelana, em direção a um revisionismo sistêmico e maior protagonismo na América Latina.
A já mencionada importância da década de 1970 para as relações bilaterais é justificada pela assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) em 1978, que marcou o início da cooperação estratégica entre os dois países. A priori, a Venezuela interpretou a iniciativa brasileira da Rodovia Transamazônica como uma possível ameaça à sua soberania, mas a assinatura do tratado acalmou as desconfianças.
Essa aproximação está diretamente ligada às crises do sistema neoliberal da década de 1980, juntamente com as crises do petróleo, que deixaram em evidência a dependência externa da Venezuela. Com a desilusão do neoliberalismo, os dois Estados engendraram uma busca por mobilizar os países da América Latina, que tinham baixa influência no cenário internacional. Além disso, essa maior proximidade também se deu em razão de contrabalançar a influência um do outro, na luta pela hegemonia regional.
Nunes (2011) aponta que a redemocratização do Brasil aumentou mais ainda a aproximação entre os dois Estados, momento em que a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 foi essencial, pois além de firmar um compromisso do Brasil com os direitos humanos, a Carta também dispõe sobre a prioridade do desenvolvimento da América Latina, por meio da integração regional.
Com o fim da Guerra Fria e a ausência de uma ordem mundial, muitos países adotaram medidas liberalizantes de forma irrestrita, seguindo as orientações dos países desenvolvidos, por meio de suas instituições, como o FMI. A intenção era combater a crise da década anterior, mas o resultado foi o esgotamento do sistema neoliberal, evidenciando a outra face da globalização: excludente e assimétrica. Assim, Brasil e Venezuela, apesar de ainda insistirem em medidas liberalizantes com Collor (1990-1992) e Pérez (1989-1993), entenderam que “(...) somente a união de forças poderia trazer algum resultado no âmbito da diminuição de suas vulnerabilidades externas frente aos países centrais” (Nunes, 2011).
Enquanto Collor iniciou o processo de abertura econômica, Pérez instituiu “El Gran Viraje” na Venezuela, um projeto de liberalização da economia que afetou negativamente a população menos favorecida, com o aumento nos preços da gasolina e do transporte. Isso resultou em uma revolta conhecida como Caracazo, que foi reprimida pela guarda nacional, acarretando muitas perdas humanas.
Por estarem alinhados aos Estados Unidos, os dois líderes se reuniam com frequência para tratar de projetos de cooperação, envolvendo a criação de uma área de livre comércio na América Latina, que depois foi oficializada pela proposta estadunidense da ALCA, em 1994. Entre 1992 e 1994 foram firmados acordos com a Iniciativa Amazônica e o Protocolo de La Guzmania. Com a eleição de Fernando Henrique Cardoso para a presidência do Brasil, houve continuidade das medidas liberalizantes e dos projetos de cooperação. É importante destacar, no entanto, que a partir de 1998, o então presidente mudou o tom acerca da globalização, passando a criticá-la com mais afinco, redirecionando seu foco para a integração da América do Sul.
Com a eleição de Chávez em 1998, a Venezuela passou a se distanciar dos países do norte global e se aproximar cada vez mais de seus vizinhos, o que desagradou os Estados Unidos, seu principal parceiro comercial, para quem o domínio sobre a república bolivariana era questão de interesse nacional. Diante das reformas propostas pelo presidente, a oposição, financiada pelos EUA, organizou um golpe de Estado e uma greve dos petroleiros, gerando uma crise energética e de desabastecimento. Nesse período de transição entre FHC e Lula, o Brasil enviou combustível e atuou como mediador para ajudar Chávez (Nunes, 2011).
Segundo Gehre (2010), a chegada de Lula à presidência em 2003, trouxe consigo a mudança da identidade internacional brasileira, definindo uma postura autonomista, priorizando a América do Sul, não mais a América Latina, para afastar a influência dos EUA na política regional e evitar a concorrência do México (Pedroso, 2015). Assim, a Venezuela chavista foi escolhida como o principal parceiro da região, o que foi, dentro do jogo diplomático, retribuído por Chávez.
Gehre (2010) aponta ainda que a aproximação pode ser explicada tanto pela identidade compartilhada de sulamericanidade, reavivada com Chávez, quanto pelo senso de oportunidade observado em momentos de adversidade, como durante a crise de governabilidade supracitada que havia acometido a Venezuela. Naquele momento, a atuação do Brasil se dividiu entre amparar seu vizinho com segurança energética, por meio do envio de 83 milhões de litros de combustível, e mediar a situação, visando proteger o governo eleito, ao mesmo tempo em que respeitava a oposição (Gehre, 2010). Para isso, foi criado o Grupo de Amigos da Venezuela, uma iniciativa de Lula, que contava com a presença de Brasil e Chile, que não apoiavam o golpe; da Espanha e dos EUA, que se aproximavam da oposição venezuelana, conseguindo a confiança do setor empresarial; e de México e Portugal, considerados neutros (Pedroso, 2015).
Pode-se observar que a pauta energética sempre esteve no centro das relações bilateral em questão, tanto por ser a principal área da economia venezuelana, quanto por ser extremamente importante para o desenvolvimento industrial brasileiro, retomado na década de 1990 com o Mercosul. O Brasil, então, comprava petróleo da Venezuela e da Argentina, de modo que a parceria com a república bolivariana atuava também como um contrapeso para a Argentina e juntos os três formavam o triângulo estratégico para a integração da América do Sul.
Essa parceria tem como exemplos a inauguração da subestação energética de Boa Vista em 2001, a linha de transmissão entre a Central Hidroelétrica Raúl Leoni, nas represas de Guri e Boa Vista, além da cooperação entre as duas empresas estatais do petróleo (Petrobrás e PDVSA, depois de nacionalizada por Chávez). Ademais, segundo Gehre (2010), a cumplicidade entre Lula e Chávez foi essencial para estreitar as relações entre os dois países, visto que a Venezuela reforçava a necessidade de um espaço econômico integrado na América do Sul, bem como apoiava o Brasil em sua luta por um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
No início dos anos 2000, tanto Venezuela quanto Brasil se opunham contundentemente à criação da ALCA e viam a necessidade de inserir pautas sociais no âmbito da integração regional. Um eventual sucesso da ALCA estagnaria o desenvolvimento econômico de ambos os países, impedindo a industrialização do Brasil e condicionando a economia venezuelana aos EUA, além de aumentar ainda mais a influência e o poder da superpotência na região. A Venezuel, então, assumiu postura mais combativa frente à hegemonia norte-americana e criou a Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América (ALBA), em 2001, adentrando a América Central e Caribe, que são historicamente áreas de domínio norte-americano. Já o Brasil de Lula criou a Comunidade Sul-Americana das Nações (CASA), em 2004, que posteriormente se tornou a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), em 2007, visando construir um espaço de diálogo na região, sem desafiar diretamente os interesses dos EUA (Pedroso, 2015).
Em 2004, os dois Estados estavam mais uma vez unidos em iniciativas de integração multilateral, com a proposta da CASA, apesar de terem interesses distintos: o Brasil visava obter acesso ao Pacífico pela Bolívia e pelo Peru, acesso ao Caribe pela Colômbia e pela Venezuela, além de resolver questões amazônicas com mais facilidade, devido à aproximação com o Suriname a Guiana. Já a Venezuela entendia a importância de se relacionar com o Brasil para ter seus interesses defendidos na região. Posteriormente, o Brasil apoio a entrada do país no Mercosul, uma vez que, como membro da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), a presença venezuelana traia mais peso para as negociações do bloco no cenário internacional (Nunes, 2011).
Também em 2004, Chávez apresentou a proposta do Banco do Sul, que deveria ser uma espécie de FMI, porém sem as políticas de austeridade características do Fundo ou a estrutura decisória assimétrica. Já o Brasil enxergava o Banco do Sul como uma oportunidade para exportar seu modelo de Banco de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) aos outros países da região. Embora tivessem ideias e objetivos distintos, ambos cooperaram, implementando a proposta brasileira, mas não sua ideia de basear a estrutura decisória de acordo com a importância econômica de cada país.
Durante seu mandato, Lula incentivou a comercialização de produtos venezuelanos no mercado interno, por meio do Programa de Substituição Competitiva de Importações, aumentando o fluxo comercial entre os dois países de forma significativa. Em 2005, ambos assinaram, em Caracas, acordos comerciais abrangendo múltiplas áreas. Entre eles, a extração de gás natural e petróleo no Rio Orinoco e a construção de uma refinaria no Brasil: Abreu e Lima (Gehre, 2010).
A segurança humana também foi um pilar observado no estabelecimento dessas relações bilaterais, visto que ambos os líderes estavam unidos contra a fome e a miséria, criando programas como o Fome Zero e o Fundo Humanitário Internacional. Assim, pretendiam, juntos, lutar contra a hierarquia da agenda internacional, que priorizava as high politics (Gehre, 2010).
Em 2006, a Venezuela manifestou sua vontade de integrar o Mercosul, ao sair da Comunidade Andina, uma vez que importava produtos dos membros do bloco, exportando petróleo para eles. No entanto, a postura ideologizada de Chávez gerou o receio de que sua presença transformasse o Mercosul em um meio de expressar sua ideologia bolivariana, motivo pelo qual o apoio do Brasil foi fundamental.
Do ponto de vista comercial, o Brasil firmou sua importância também como fornecedor de alimentos à Venezuela, além de incluí-la em seus planos de internacionalização de empresas e de políticas públicas, com o apoio do BNDES. Além disso, foi inaugurado um escritório do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) em Caracas, para estudar mais possibilidades de cooperação e integração entre os dois países. A Venezuela também passou a contar com diversas instituições brasileiras, como: Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil, EMBRAPA, ABIN, Petrobrás, Polícia Federal, além de representações diplomáticas e das Forças Armadas (Pedroso, 2015).
Segundo Pedroso (2015), a interdependência entre os dois países entre 2002 e 2010 era assimétrica, mais favorável ao Brasil, visto que devido à importância do Brasil no fornecimento de alimentos, nas negociações no âmbito do Mercosul e na segurança que essa parceria proporcionava à Venezuela, diante das possíveis consequências de sua postura combativa em relação aos EUA, Chávez acabava por ceder e atender aos interesses brasileiros.
É interessante perceber que, até esse momento, as relações bilaterais entre Brasil e Venezuela foram tratadas pelo viés econômico, geopolítico, estratégico e, posteriormente, social, de modo que as ideologias opostas em determinados momentos, como durante o governo FHC, não foram um impeditivo para estabelecer uma maior proximidade entre os dois países. A palavra de ordem parecia ser a tradição da política externa, bem como a integração da América Latina, prevista na Constituição Federal.
No entanto, com a ascensão de Nicolás Maduro em 2013, a Venezuela foi tomada por crises econômicas e sociais, o que só piorou com as sanções impostas pelos Estados Unidos. O Brasil também se encontrava em crise durante o segundo mandato de Dilma Rousseff (2014-2016), devido à desaceleração da economia e demandas populares, insufladas pelos EUA para derrubar o governo de esquerda.
Ao analisar o período entre 2013 e 2016 na plataforma Comex Stat (2024), tem-se que o governo Rousseff protagonizou uma queda exponencial nas exportações para a Venezuela: de US$4,8 bilhões em 2013 para US$1,28 bilhão em 2016. As importações também caíram, indo de US$1,18 bilhão em 2013 para US$415 milhões em 2016. Isso pode ser explicado pela virada à direita no Brasil, seguindo os interesses dos EUA, que haviam sancionado a Venezuela de Maduro em 2015.
Com a destituição de Dilma Rousseff em 2016, seu vice, Michel Temer assumiu a presidência do país entre 2016 e 2018, dedicando-se a fazer uma nova política externa. Em outras palavras, Temer iniciou o distanciamento com a Venezuela de Maduro, sendo o responsável pela suspensão da república bolivariana do Mercosul (Moreira, 2020). Essa atitude teve graves consequências nas relações comerciais dos dois países: as exportações atingiram níveis mais baixos desde de 2013 (de US$1,28 bilhão em 2016 para US$576 milhões em 2018) e as importações também caíram (de US$ 415 milhões em 2016 para US$171 milhões em 2018), segundo o Comex Stat (2024). De acordo com Moreira (2020), essa mudança era justificada pelas eleições vindouras de 2018, de modo que o governo tinha mais motivações internas do que externas. No entanto, isso também pode ser explicado pelo pacote de sanções imposto por Trump à Venezuela em 2017 (Valente, 2024).
O governo Bolsonaro (2019-2022) deu continuidade à política de afastamento de Temer, subindo o tom com a Venezuela, devido ao alinhamento incondicional aos Estados Unidos de Trump, que havia reconhecido Juán Guaidó como novo presidente. Para Moreira (2020), a política externa de Bolsonaro adotou uma postura agressiva e belicosa frente à Venezuela, não excluindo sequer a possibilidade de intervenção militar, o que rompeu com a tradição do Itamaraty de ser o mediador de conflitos na região desde o século XIX. Assim, o Brasil perdeu o protagonismo nas decisões regionais, passando a representar os interesses norte-americanos.
O autor ainda ressalta que esse afastamento não trouxe nenhum benefício ao Brasil, o que pode ser corroborado com a análise dos dados de exportação e importação do Ministério de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços: as exportações atingiram o menor índice observável até então, US$421 milhões em 2019. As importações também atingiram o índice mais baixo: US$76 milhões em 2020 (Comex Stat, 2024).
No entanto, apesar da retomada do crescimento das trocas comerciais ainda em 2022, Bolsonaro deixou a presidência com as relações fragilizadas entre os dois Estados, o que até o momento não foi revertido pelo terceiro mandato de Lula. Além disso, o atual presidente, tem que lidar com a falta de credibilidade externa do Brasil para atuar como mediador na América Latina, não conseguindo manter uma postura ativa para enfrentar as pretensões expansionistas da Venezuela em relação à Guiana, bem como o avanço do regime autoritário de Maduro.
Como observado, a Venezuela historicamente tem relações com os Estados Unidos. Contudo, devido à hegemonia do país norte americano, as potências que contrabalançam os EUA no sistema internacional acabam por também tentar influenciar o meio interméstico da Venezuela. Isto é, Rússia e China, apesar de atuações distintas na política venezuelana, tentam influenciá-la por diferentes motivações econômicas e estratégicas.
Sobre a ingerência dos EUA, eles visam isolar o governo venezuelano, aplicando sanções econômicas e diplomáticas para pressionar a saída de Nicolás Maduro, com ênfase em restaurar a democracia e aliviar a crise humanitária, sobre a qual eles têm parcela de responsabilidade. Sua ingerência se manifesta, então, em apoio à oposição e em tentativas de influência econômica e política.
Já a Rússia, tradicionalmente oposta aos EUA, apoia Maduro e busca reforçar sua presença no Hemisfério Ocidental como contrapeso aos norte-americanos. Ademais, fornece apoio militar e energético à Venezuela, reforçando alianças anti-imperialistas e ampliando sua influência regional.
Por fim, a China se concentra em interesses econômicos, com investimento significativo em infraestrutura e petróleo, visando garantir recursos naturais e fortalecer alianças na América Latina sem interferir diretamente na política interna venezuelana, em respeito à sua política externa de ascensão pacífica com respeito às demais soberanias nacionais.
Em suma, a Venezuela, após anos de governos autoritários, ainda enfrenta uma ameaça ao seu Estado de Direito e o chavismo ainda é presente em seus círculos políticos. Portanto, o clima político contemporâneo está cheio de animosidades e devemos considerar que a população civil está fragilizada internamente e que externamente há consequências para as relações internacionais da Venezuela. A nível internacional, o país sofre ingerência externa das potências hegemônicas, enquanto a nível regional está cada vez mais isolado.
Sobre as perspectivas futuras para a Venezuela, há os que ainda erroneamente defendam que os EUA deveriam intervir para reestabelecer o Estado de Direito democrático no país latino-americano. Mas, como defendem os analistas anti-imperialistas, a Venezuela por si só deve ser capaz de resolver seu conflito interno, amparar sua população, com apoio de seus parceiros regionais. Aqui vale-se mencionar que o Princípio de Autodeterminação dos Povos que defendeu o respeito ao princípio da igualdade soberana dos países.
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