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As Mulheres nos Movimentos de Libertação Anti-Apartheid na África do Sul

Por: Emily Campos

Giovana Cecilio


Ainda que a implementação do apartartheid na África do Sul seja datada de 1948, sua origem remonta à Europa do século XVI a partir da perseguição religiosa dos calvinistas - também conhecidos como puritanos -, liderados por Oliver Cromwell, aos seguidores de outros credos na Inglaterra. Com a restauração monárquica e o restabelecimento do Parlamento, as liberdades, inclusive a religiosa, foram reconstituídas e consolidadas (BRAVO, 1982).


A proibição de qualquer tipo de perseguição religiosa levou milhares de puritanos ao exílio, formando duas correntes: (i) uma que se dirigiu para as colônias britânicas na América do Norte e (ii) outra que escolheu ir para a Holanda.



No Novo Mundo, sob impacto da rápida industrialização, urbanização e difusão da educação gratuita, suas convicções não encontraram campo profícuo à sua afirmação, embora ainda hoje se identifiquem, em certas áreas restritas, os seus vestígios.


Na Holanda, de início, os puritanos ingleses encontraram um clima bastante

propício às suas crenças e ao exercício de suas atividades repressivas. [...]. Com o

passar do tempo, todavia, o clima de intolerância que se registrava na Holanda foi

dando lugar a maior liberdade religiosa e, cedo, inconformados com a negação ao

direito que reivindicavam de perseguir os partidários de outras seitas cristãs, os

descendentes dos antigos puritanos partiram outra vez. Agora, holandizados, unidos aos nativos irmãos de credo, decidiram instalar-se em uma região remota, onde estabeleceriam suas próprias leis. Assim, fixaram-se inicialmente na Colônia do Cabo, na África, onde desenvolveram costumes e, até mesmo, uma língua própria - o afrikaaner. (BRAVO, 1982, p. 176)


Em território africano, ocorreram confrontos entre os puritanos advindos da Holanda e os ingleses - vistos como hereges - que também objetivavam conquistar a região. Os primeiros foram obrigados a se mudarem para os chamados Estado Livre de Orange e a República do Transvaal, onde se dedicaram plenamente às suas atividades teológico-persecutórias: em cinco campanhas militares, foram exterminadas tribos Kaffirs nativas que, além de animistas, não eram brancas.


Esses confrontos entre os puritanos advindos da Holanda e os ingleses continuaram, dando origem à Guerra dos Bôeres entre 1899 e 1902, ocasião em que, apesar de derrotados, os primeiros tiveram sentimentos nacionalistas e religiosos ressurgidos, passando a ser conhecidos como afrikaaners. Nesse sentido, após o fim da I Guerra Mundial, estratificou-se uma divisão na África do Sul entre dois grupos distintos:


[...] no Sul, estabeleceram-se os novos imigrantes, de procedência britânica e

tendência marcadamente liberal; no Norte, continuaram prevalecendo os

descendentes dos pioneiros, motivados pelo excessivo zelo religioso e apego às

velhas formas de vida. (BRAVO, 1982, p. 177)


O conflito político entre esses grupos foi vencido pelo segundo quando, após a sua eleição em 1948, com base nas políticas segregacionistas anteriores, o Governo Nacionalista (GN) começou a implementar uma série de leis e reformas constitucionais que deveriam constituir a política do apartheid. O período dos primeiros 10 anos do GN no poder constitui-se como a fase de construção do que viria a ser, em 1960, um estado policial totalitário. Esse "estado policial totalitário" foi o apartheid: uma política governamental baseada na raça, projetada para criar um sistema de discriminação "legal" contra os habitantes não brancos da África do Sul (FRATES, 1993).


A ideologia de superioridade branca foi essencial para o sistema de exploração agrária ao qual se dedicavam os afrikaaners. Quando o país tornou-se independente da Coroa Britânica, em 1910, começou a implementação de leis segregacionistas, a mais notável delas, o Native Labour Act de 1913 que dividiu a África do Sul em duas, 7% do território - correspondendo às terras menos férteis - ficaram para a população negra (75%), enquanto 93% do território ficou para os brancos que representavam 10% da população. A exploração da mão de obra negra foi regulamentada com o Native Affairs Act e com a tomada do poder político pelos afrikaaners, nacionalistas conservadores que viam a África do Sul como um país europeu estabelecido em África, o apartheid - do afrikaaner “separação”, “apartado” - passou a ser institucionalizado, tornando-se um dos pilares para o desenvolvimento do país (PEREIRA, 2008).


Se desde a primeira ocupação por colonos holandeses na região os distintos grupos étnicos sofriam violenta exploração, com a institucionalização da segregação a tomada de todos os direitos que torna uma pessoa cidadã viu-se avançando. Dentre as proibições legais estavam a proibição de casamentos entre pessoas de grupos raciais diferentes, determinação de áreas de agrupamento e dos locais que poderiam ser frequentados e a introdução de cartão de identidade diferente para pessoas negras e não brancas a partir da lei de registro populacional. Ainda, pessoas não brancas não podiam votar, candidatar-se a cargos públicos, empregar pessoas brancas ou ocupar certas funções no mercado de trabalho.


Defrontadas com a constante negação de direitos, pessoas negras de distintos grupos étnicos e minorias numéricas de mestiços e asiáticos não mantiveram-se passivos diante do regime e organizaram-se em grupos de resistência. Porém, quando observa-se a literatura sobre o tema pouca ênfase é dada à atuação das mulheres nos movimentos de libertação.


Então, onde estavam as mulheres? Tais estudos costumam abordar principalmente a participação em grupos armados estatais ou guerrilheiros, negligenciando outros tipos de atuação, como consequência negligenciando o papel que as mulheres tiveram na resistência desde suas casas e comunidades. Isto é reflexo da própria forma como os conflitos de modo geral são definidos e estudados, bem como por quem são estudados, o que resulta nos papéis das mulheres sendo analisados apenas seguindo a definição ortodoxa de combate sem levar em consideração a estrutura que definia as formas nas quais essas mulheres poderiam estar agindo (MAGADLA, 2015).


Deste modo, percebe-se como há um apagamento político, epistêmico e historiográfico das mulheres negras, tanto na literatura sobre o apartheid quanto no regime em si. Definido sempre como um regime de segregação racista, esquece-se de como também foi genderizado, isto é, tanto a estrutura racista quanto a de opressão de gênero permitiam que a exploração intensiva do capitalismo sul-africano perdurasse (KONZEN, SILVA, 2021). Como o sistema de mão de obra priorizava o trabalho de homens africanos, estes precisavam

migrar das áreas de agrupamento destinadas às pessoas negras para trabalhar nos latifúndios, minerações e demais empregos. Assim, a maior parte das mulheres permaneciam nas comunidades que, por agruparem mais de 70% da população, tornavam-se cada vez mais superpovoadas.


Funções sociais que foram impostas, como educar as crianças, cuidar dos idosos e dos doentes, permitiam os homens de serem a força de trabalho da acumulação monopolista. A principal função das mulheres nesse "sistema segregacionista era apenas multiplicar a força produtiva a baixo custo, ao gerar uma prole 'devidamente' racializada (HEALY-CLANCY, 2017)" (KONZEN; SILVA, 2021, p. 53). Ou seja, não só as leis foram responsáveis por sustentarem o apartheid, inferiorização social que dava-se a partir do entendimento de que a mulher, especialmente a africana, era um ser apolítico, e a subserviência sexual, foram essenciais para manter o funcionamento do regime (KONZEN; SILVA, 2021).


Essas condições impostas às mulheres não somente alimentaram o regime do

aparthaeid como também serviram de ferramenta para o capitalismo sul-africano:


O isolamento das mulheres na reserva – onde ficavam condicionadas a educar os

filhos e cuidar dos idosos e doentes – era imperativo para a acumulação

monopolista de riqueza e poder no setor branco. O fluxo ininterrupto de

mão-de-obra barata, o ouro negro da África do Sul, era o único diferencial na

economia sul-africana para gerar os altos lucros essenciais para atraírem o capital

(estrangeiro e local) que sustentava o apartheid. Esse tipo de trabalho dependia, em última instância, da contínua subjugação das mulheres, não apenas por meio da lei, mas também pela inferiorização social e subserviência sexual (MEER, sem data). (KONZEN; SILVA, 2021, p. 53)


Não obstante, tais condições não foram aceitas de forma passiva. Muitas mulheres se organizaram na Federação de Mulheres Sul-Africanas criada em 1954. Como o GN havia adotado um programa de ação contra greves, desobediência civil e não cooperação, as formas de resistência durante os anos 50 foram sobretudo não-violentas. Nesse período, a principal demanda das mulheres, representada dentre tantas outras na Carta das Mulheres adotada pela Federação, era findar com as leis de passes que controlavam a entrada e saída das mulheres das cidades. Tais leis obrigavam mulheres a abandonar familiares, dependentes e destruíam o

núcleo familiar (KONZEN, SILVA, 2021).


Em 9 de agosto de 1956, vinte mil mulheres marcharam até os Union Buildings com as cores verde e preto do Congresso Nacional Africano (ANC, sigla referente ao nome em inglês), sáris indianos e turbantes Xhosa exigindo seus direitos. Tamanho manifesto ficou marcado como um grande momento não apenas para o movimento das mulheres na África do Sul como para todo o movimento de libertação anti-apartheid (KONZEN, SILVA, 2021). O GN não reconhecia o estado de guerra civil do país, e sim definia a situação como o Estado estando sob ataques de grupos terroristas, o que privou todas as partes não-estatais envolvidas

no conflito do status de prisioneiro de guerra estabelecidos pelo Protocolo de Geneva para pessoas que entram em guerra contra poderes coloniais. Fato que hoje torna muito mais difícil o reconhecimento de ex-combatentes e concessão de benefícios por parte da África do Sul, mais ainda quando são mulheres ex-combatentes (MAGADLA, 2015).


Adentrando à ilegalidade a qual os movimentos foram condicionados e a

radicalização das frentes de resistência, Siphokazi Magadla (2015) nos apresenta três categorias nas quais podem ser compreendidas diferentes formas nas quais mulheres participaram da resistência anti-apartheid, sejam elas battlefront ou homefront. Buscando ir além da definição ortodoxa de combate, diversos fatores devem ser considerados ao analisar a participação de determinado grupo em movimentos de resistência, desde o grau de violência do conflito e a localização geográfica dos acontecimentos até o grupo etário e o papel social

atribuído naquela comunidade e naquele contexto.


No contexto do apartheid sul-africano, três categorias podem ser definidas na tentativa de sistematizar a atuação feminina: guerrilla girls, combative mothers e in-betweeners. Em tradução livre seriam as garotas guerrilheiras, mães combativas e intermediárias. As Garotas Guerrilheiras recebem esse nome, pois o grupo que compunha as mulheres nos fronts de batalha eram geralmente de adolescentes ou jovens mulheres na casa dos 20 anos com histórico de participação em movimentos estudantis e experiências traumáticas de violência

causadas pelo apartheid. Participando de grupos armados como Umkhonto weSizwe (MK) do ANC, Exército de Libertação do Povo Azaniano (APLA, sigla em inglês) do Congresso Pan Africanista (CPA) e Amabutho, Unidade de Auto Defesa (SDU, sigla em inglês), essas mulheres recebiam treinamento militar do básico ao avançado em diversos países, como Tanzânia, Angola, Alemanha Oriental, Cuba e Rússia (MAGADLA, 2015).


As Mães Combativas, por sua vez, tomam parte especialmente durante a década de 1980 quando o confronto violento contra as forças do apartheid aumentou significativamente no que foi chamado de Revolta das Cidades (township uprising) em que as pessoas, em especial os homens jovens, denominados de jovens leões, defendiam suas comunidades de forma armada. Neste contexto, as mães não eram apenas mães de suas crianças biológicas. As mulheres mais velhas adquiriram um papel social de prover “cuidado materno”, protegendo

os jovens das forças policiais estatais, por conseguinte ocupando a linha de frente da guerra. Apesar de críticas ao papel de 'maternar', Magadla argumenta que essa função foi estruturada a partir das condições em que essas mulheres estavam - de permanecerem nas comunidades - e seus métodos escolhidos de ativismo.


Já entre as Garotas Guerrilheiras que assumiam o papel de combatentes de ataque e as Mães Combativas que atuavam na defensiva de suas comunidades e jovens, haviam as mulheres que exerciam os dois lados conforme as necessidades. Essas mulheres eram jovens e possuíam motivações para participar de organizações que lutavam pela causa estudantil e da juventude, pois tinham preocupações com o acesso à educação formal. Assim, elas tinham a

função de fazer com que mulheres que já eram mães entendessem a importância de engajar-se em organizações políticas e resistissem no homefront através do boicote às escolas (MAGADLA, 2015).


No âmbito da resistência política, foi criada a Federação de Mulheres Sul-Africanas

(FEDSAW, sigla referente ao nome em inglês), que adotou a Carta das Mulheres em que demandavam equidade dentro do movimento de libertação. As reivindicações presentes nessa Carta abarcavam os seguintes pontos: (i) educação gratuita e universal; (ii) creches e centros de assistência infantil; (iii) habitação adequada; (iv) subsídio para alimentação adequada e

suficiente para toda a população; (v) reforma agrária; (vi) abolição do trabalho infantil; (vii) cuidados adequados aos idosos; (viii) benefícios aos trabalhadores; (ix) direito ao voto; (x) igualdade de direitos entre homens e mulheres no que se refere à propriedade, ao casamento e à guarda dos filhos; e (xi) paz e liberdade.


Além disso, tanto para as mulheres do movimento FEDSAW quanto para aquelas da Liga das Mulheres do ANC (ANCWL, sigla referente ao nome em inglês), o ativismo feminista a que os movimentos faziam eco era o anticolonial, de forma que se rejeitava a associação ao feminismo burguês ocidental. Para as sul-africanas não brancas, estava claro que a luta não era por uma mera igualdade em relação aos homens, visto que os sul-africanos não-brancos também estavam sujeitos à legislação opressora do regime do apartheid. "Sempre houve um forte reconhecimento do fato de que a utilidade do feminismo residia na capacidade de se engajar criticamente em questões de raça e classe" (KONZEN; SILVA, 2021, p. 63), além de não estar subordinado ao nacionalismo, mas sim fortemente integrado e inseparável dele.


As figuras femininas, portanto, foram sinônimo de força frente à insegurança e

opressão advindas do regime segregacionista e às responsabilidades familiares que, muitas vezes, assumiam sozinhas. Nesse sentido, nos movimentos de libertação contra o apartheid, desempenharam papéis como organizadoras, porta-vozes e líderes, ainda que, proporcionalmente, estivessem em número menor em relação aos homens.


Com o endurecimento do regime e a introdução de legislação antiterrorista,


as mulheres e suas organizações “tornaram-se parte da resistência clandestina e dos preparativos gerais para a luta armada para acabar com o apartheid” (BERNSTEIN, 1975, p. 54). [...].


Mulheres como Albertina Sisulu, Winnie Madikizela-Mandela, Joyce Sikakhane e

Shantie Naidoo lentamente reconstruíram o movimento na clandestinidade nos

arredores de Soweto. Nesse período, muitas sofreram confinamento solitário,

prisões sem julgamento por tempo indeterminado e torturas. Eram incriminadas por traição, terrorismo, sabotagem, filiação a alguma organização proibida, por ajudar pessoas a escaparem do país, recrutar guerrilhas, violar ordens de banimento, etc. (BERNSTEIN, 1975). (KONZEN; SILVA, 2021, p. 58)


Assim, ainda que a violência, em suas mais variadas facetas, tenha sido utilizada

como arma contra esses movimentos de resistência realizados por mulheres, não foi suficiente para desencorajá-los. Logo, mesmo ilegalizado e no exílio em diversos países africanos, o ANC continuou funcionando enquanto "uma rede de solidariedade e de assistência social ao movimento, necessária enquanto as pessoas se encontrassem distantes de suas redes de apoio convencionais" (KONZEN; SILVA, 2021, p. 58).


A partir da análise acima, depreende-se que tanto ao longo das décadas do regime de apartheid quanto em período anteriores, as mulheres não-brancas da África do Sul estiveram em diferentes frentes da luta contra a segregação. Do combate direto armado aos movimentos sociais e políticos e a resistência local dentro de suas comunidades. A forma como cada mulher pode participar dependeu do contexto no qual estavam inseridas. Porém, apesar de sempre serem lembrados nomes masculinos, as mulheres também fizeram história e

contribuíram em diferentes esferas para o fim do apartheid, levantando a bandeira também de igualdade de gênero, por entenderem que, o regime violentava homens e mulheres com armas por vezes diferentes. Dessa forma, era impossível findar a segregação racial sem se atentar aos mecanismos que o Estado tinha para restringi-las.


Referências


BRAVO, Rubens Peach. O Apartheid Na República Sul-Africana: implicações e perspectivas. A Defesa Nacional, v. 69 n. 701, 1982.


CLARK, Nancy; WORGER, William. South Africa: The rise and fall of apartheid.

Routledge, 2013.


FRATES, L. Lloys. Women in the South African National Liberation Movement, 1948-1960: An Historiographical Overview. Ufahamu: A Journal of African Studies, v. 21, n. 1-2,

1993.


HEALY-CLANCY, Meghan. Women and Apartheid. In: Oxford Research Encyclopedia of African History. 2017.


KONZEN, Isadora Durgante; DE SOUZA SILVA, Karine. A RESISTÊNCIA DAS

MULHERES NEGRAS AO APARTHEID NA ÁFRICA DO SUL. Revista TransVersos, n.

21, p. 50-73, 2021.


MAGADLA, Siphokazi. Women combatants and the liberation movements in South Africa: Guerrilla girls, combative mothers and the in-betweeners. African Security Review, v. 24, n. 4, p. 390-402, 2015.


PEREIRA, Analúcia. Apartheid: Apogeu e crise do regime racista na África do Sul. In:


MACEDO, José. Desvendando a história da África. [S. l.]: Editora da UFRGS, 2008. cap. 11, p. 138-157.

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