Por: Daniele Thomaselli Vasques de Oliveira e Kethlyn Gabi Winter da Silva
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O Novo Regionalismo, no qual se insere a criação do MERCOSUL, é marcado pela multipolaridade, pelas transformações econômicas, pelo fim do terceiro mundismo como instituição e pela democratização, a fim de atribuir à integração um caráter amplo, aprofundado e diverso (FAWCETT, 1996). A partir da criação do MERCOSUL, a interação entre seus países-membros passou a exigir colaboração conjunta acerca de pautas sociais e, entre elas, a perspectiva de igualdade de gênero, tão cara ao processo de integração regional. Dessa forma, na IV Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher, entre 1995 e 1997, uma declaração conjunta foi emitida por setores governamentais dos países-membros do MERCOSUL, direcionados a mulheres, a respeito da necessidade de implementação de mecanismos para a garantia de “igualdade de oportunidades entre homens e mulheres no desenvolvimento dos trabalhos nos âmbitos de negociação que integram o MERCOSUL” (PERRETT; NÄGUEL, 2012, p. 7). Em 1998, uma Resolução do Grupo Mercado Comum (GMC) estabeleceu a criação da Reunião Especializada da Mulher do MERCOSUL (REM), que teve seu status elevado para Reunião de Ministras e Altas Autoridades (RMAAM) em dezembro de 2011, reverberando os avanços institucionais conquistados pela REM (PERRETT; NÄGUEL, 2012) e representando um aumento na hierarquia dessa instância.
Como é descrito no documento escrito por Perrett e Näguel (2012), o RMAAM se trata do principal fórum voltado à coordenação entre autoridades destinadas ao avanço dos direitos das mulheres, visando debater, promover e facilitar políticas públicas regionais em prol da igualdade de gênero. Integrada por cinco Estados-partes (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela) e cinco associados (Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru), há a participação tanto de representantes governamentais quanto de representantes da sociedade civil, além de organizações não-governamentais. Nesta, são discutidos, dentre outros temas, a participação político-econômica das mulheres, o combate e erradicação de todas as formas de violência de gênero, a saúde sexual e reprodutiva das mulheres e as condições laborais femininas, a fim de ampliar conquistas em cada um dos países e promover “a inclusão da perspectiva de gênero na institucionalidade do MERCOSUL” (PERRETT, NÄGUEL, 2012, p. 8).
Existe uma similaridade entre as mulheres latino-americanas que potencializa a importância de iniciativas como o RMAAM: a violência de gênero sofrida cotidianamente é somada a colonização que historicamente assolou os países da região. Esse colonialismo, praticado por potências europeias na América Latina, inclusive, corroborou a condição de exploração dos corpos femininos, fazendo com que a organização da sociedade patriarcal fosse ainda mais violenta (PIMENTEL; MUÑOZ, 2016). Nesse sentido, o esforço coletivo das mulheres em estabelecer dispositivos para mitigar as problemáticas vivenciadas e permitir com que “suas vozes sejam ouvidas para que diferentes governos dos países que compõem o Mercosul tomem medidas para combater a violência patriarcal” (PIMENTEL; MUÑOZ, 2016, p. 152) foi essencial para que a REM, aparato pioneiro para igualdade de gênero regionalmente, fosse institucionalizada e, mais tarde, a RMAAM, a qual ganha papel de destaque na luta contra a exploração e tráfico sexual de mulheres.
Existem várias causas na América Latina que permitem a exploração sexual de mulheres, entre as quais podemos citar a pobreza. Mas é uma pobreza que por si só não explica esse tipo de exploração. Pobreza que se entrelaçada com o modelo de sociedade mencionado aqui que é excludente; sociedade colonizada mental e culturalmente, onde se continua legitimando, assumindo e reproduzindo o papel do conquistador e colonizador. Colonialidades que não permitem que América Latina supere a pobreza, pois dela se aproveitam vários setores que a perpetuam para manter-se política e economicamente no poder, no topo da pirâmide sócio-política. Em outras palavras, raça e gênero desempenham papel importante no controle sobre os corpos das mulheres utilizadas pelos turistas que encontram seus "objetos" para exercer o poder nos países anteriormente chamados Terceiro Mundo (PIMENTEL; MUÑOZ, 2016, P. 173).
Nesse sentido, a criação do RMAAM busca promover a formulação de políticas públicas regionais para mulheres, a fim de combater qualquer tipo de violência, seja esta física, social ou reprodutiva, por exemplo (PERRETT; NÄGUEL, 2012). Para alcançar tais objetivos, o fórum criou duas mesas técnicas, sendo elas: “sobre violência de gênero (em especial: erradicação da violência doméstica e combate ao tráfico de mulheres); e sobre gênero, trabalho e integração econômica” (PERRETT; NÄGUEL, 2012, p. 8). Desde sua criação até 2018, o RMAAM contou 12 encontros em sua esfera, além de 26 encontros da no âmbito da REM (MERCOSUL, 2018). Nessas 38 reuniões, os temas abordados contaram com assuntos como “à participação econômica e política das mulheres, à eliminação da violência em todas as suas formas, à saúde das mulheres, às condições sócio laborais e ao combate ao tráfico de mulheres, entre outros” (MERCOSUL, 2018a, online).
Em 2014, foi proposta na RMAAM uma cartilha de “Diretrizes da Política de Igualdade de Gênero no MERCOSUL”, aprovada pelo Conselho da organização intergovernamental e cuja aplicação foi instruída aos órgãos e foros da estrutura institucional. Esse documento pontua a importância do compromisso com os Direitos Humanos, essenciais ao pleno desenvolvimento da sociedade, e reafirma que “processos de integração regional devem ser voltados para beneficiar em condições de igualdade e equidade mulheres e homens” (MERCOSUL, 2014, p. 3), ampliando o acesso feminino a recursos e oportunidades e “levando em conta as especificidades das mulheres em toda sua diversidade (geracional, de raça, etnia, origem, deficiência, localização geográfica, pertença cultural, religiosa e orientação sexual e identidade de gênero)” (MERCOSUL, 2014, p.3).
Com uma proposta de transversalizar o enfoque e debate de gênero, a partir das dimensões institucional e de políticas regionais - com a inclusão da pauta em espaços de decisão e deliberação, criação de políticas especializadas e monitoramento de avanços -, os programas, projetos, ações e políticas regionais devem ser norteados a partir da ”1.Igualdade e equidade; 2. Não discriminação; 3. Diversidade; 4. Laicidade do Estado; 5. Justiça social; 6. Vida livre de violência; 7. Participação social” (MERCOSUL, 2014, p. 7), com compromisso de todos os órgãos do MERCOSUL e monitoramento da RMAAM para aplicação dessas políticas regionais, com uma apresentação de relatórios anuais e a elaboração de um plano de ação (MERCOSUL, 2014).
Dentre as diretrizes deliberadas na RMAAM, podemos citar: no âmbito do trabalho, propõe-se adotar políticas voltadas a mitigar os efeitos da divisão sexual do trabalho, proporcionar maior inserção e permanência feminina no mercado tradicional e acesso a recursos produtivos, sobretudo no que diz respeito a mulheres rurais; na esfera política, declara-se a necessidade de ampliar a participação partidária da mulher, da representação legislativa e do fomento à participação da sociedade civil organizada na luta por direitos das mulheres. Ainda, são reiterados os direitos ao acesso universal a serviços de saúde gratuitos, de qualidade e humanizados, além da plena possibilidade de tomada de decisões quanto a direitos reprodutivos, sem quaisquer tipos de violência, coerção ou discriminação. O direito à educação - além da conquista de espaços e sistemas educativos mais inclusivos e interculturais -, possibilitando à mulher ingressar e se destacar na ciência e tecnologia é, também, ressaltado (MERCOSUL, 2014).
Além disso, o documento conta com seções destinadas à elaboração de projetos e políticas voltados ao direito a habitats seguros, proteção social a mulheres migrantes, obtenção de recursos jurídicos imparciais para assegurar um processo idôneo e com ênfase na reparação da violência baseada em gênero, e, por fim, ao desenvolvimento de sistemas de informações com as estatísticas atualizadas periodicamente para análises quantia perspectivas de gênero na região, que estejam a disposição dos atores político-institucionais do MERCOSUL, “a fim de apoiar a tomada de decisões e o desenho de políticas que promovam a equidade de gênero no bloco” (MERCOSUL, 2014, p. 10).
E de que maneira a criação do RMAAM colaborou para o avanço da pauta de gênero nos países latino-americanos? A partir desse questionamento, é possível pontuar 20 conquistas, listadas pelo próprio MERCOSUL, que abarcam questões desde o desenvolvimento socioeconômico e cultural até a participação da mulher na política. Entre esses pontos destacam-se a criação do fórum para o desenvolvimento social, econômico e cultural, como demandas da sociedade civil e de movimentos de mulheres/feministas da região; a análise da construção do sistema de comparação das violências domésticas com relação ao gênero, incluindo questões de tráfico de mulheres para exploração sexual e a partir desse diagnóstico, o mapeamento de rotas internas e internacionais de tráfico de mulheres; a aprovação do “Guia MERCOSUL de Atendimento à Mulher em Situação de Tráfico para Fins de Exploração Sexual”; a integração da pauta de gênero do Plano Estratégico de Ação Social do MERCOSUL; a construção da Política de Igualdade de Gênro no Mercosul e a aprovação das Diretrizes da Política de Gênero do MERCOSUL, com a contribuição de organizações de mulheres/feministas, para lograr a igualdade de gênero e não discriminação de mulheres nos países do bloco; a criação do Mecanismo de Articulação e da REDE de Atenção, visando atenção e suporte às mulheres vitimas de tráfico e violência sexual; a criação do Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos do MERCOSUL; a organização do Projeto de Cooperação Internacional para o desenvolvimento sustentável de mulheres afrodescendentes e indígenas; a inserção etnico-racial nas discuções; e a formação de normas no bloco que atendam temas como a participação da mulher na política, “saúde da mulher, violência de gênero, estatísticas de gênero, trabalho doméstico, trabalho feminino e rural assalariado, participação da mulher na economia, gênero e educação, dimensões da pobreza , desenvolvimento da economia social para a integração da mulher” (MERCOSUL, 2018b, online).
Mesmo que haja tantos pontos de conquista, ainda é necessário chamar a atenção para conquistas futuras. O debate sobre igualdade de gênero e combate a violência contra a mulher são um avanço constante para a integração no sentido de desenvolvimento social e econômico da região. O empoderamento político ainda é uma realidade bastante desigual em muitos países do MERCOSUL (RIBEIRO, 2018), sendo o espaço político palco de grande desigualdade e de caráter patriarcal.
Para manter a eficácia da implementação das políticas propostas pelo RMAAM, é necessário maior esforço no que tange a participação política da mulher. É fundamental que esta pauta esteja em nível de igualdade em todos os países do bloco, de modo que haja uma integração político-social (RIBEIRO, 2018) e, consequentemente, uma maior projeção internacional do MERCOSUL. Conclui-se portanto, que o pluralismo nas questões políticas – lê-se a inserção feminina nessa seara -, além de quebrar toda lógica e influência patriarcal na condução da política, fomenta a abertura de espaços mais igualitários e desenvolvimento democrático.
REFERÊNCIAS:
FAWCETT, Louise. Regionalism in Historical Perspective. In: Regionalism in World Politics: Regional Organization and International Order. Oxford: Oxford University Press, 1995.
MERCOSUL. MERCOSUL/CMC/DEC. N° 13/14: Diretrizes da Política de Igualdade de Gênero do Mercosul. VLVI CMC: Caracas, 2014.
______. Eventos reúnem mulheres para discutir políticas de gênero na região. Mercosul, 2018a. Disponível em: https://www.mercosur.int/pt-br/eventos-reunem-mulheres-para-discutir-politicas-de-genero-na-regiao/. Acesso em: 23 mar. 2021.
______. 20 logros en 20 años. Mercosul, 2018b. Disponível em: https://www.mercosur.int/20-logros-en-20-anos/. Acesso em: 23 mar. 2021.
PERRETT, Diana González; NÄGEL, Andrea Tuana. Guia MERCOSUL de atenção a mulheres em situação de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Tradução de Verônica Maria Teresi. 2012. 93 p. Disponível em: https://bibliotecadigital.mdh.gov.br/jspui/handle/192/752. Acesso em: 23 mar. 2021
PIMENTEL, Fagner Barbosa; MUÑOZ, Maria Alejandra Montilla. Violência contra as Mulheres e suas vozes no Mercosul. Hegemonia: Revista de Ciências Sociais, n. 18, p. 148-188, 2016. Disponível em: https://revistahegemonia.emnuvens.com.br/hegemonia/article/view/182/139. Acesso em: 23 mar. 2021.
RIBEIRO, Isadora Carolina Vinhal et al. As políticas de enfrentamento da desigualdade de gênero no MERCOSUL: um estudo das normativas implementadas de 2006 a 2016. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Relações Internacionais). Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2018 Disponível em:. http://clyde.dr.ufu.br/handle/123456789/22066. Acesso em: 22 mar. 2021.
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