Por:Maria Vitória de Araújo Mourão.
A partir de meados do século XXI, nota-se um aumento gradativo do tráfico de pessoas, problemática essa que desperta a atenção mundialmente, tendo em vista que fere de forma direta os direitos humanos. Ainda, diz respeito a uma rede internacional ilícita extremamente lucrativa, possuindo rotas por todo o globo, atingindo desde países mais desenvolvidos à países menos desenvolvidos. De acordo com dados divulgados pela Organização Internacional do Trabalho, a OIT, no relatório denominado Uma Aliança global contra o trabalho forçado, realizado no ano de 2005, o lucro anual chegava a cerca de US$31,6 bilhões. O tráfico internacional de pessoas se configura sendo de baixos riscos, porém com lucros altíssimos. As vítimas adentram nos países em questão "disfarçadas" como trabalhadoras em serviços como babás, garçonetes, modelos, dançarinas, etc. (ALVES, 2021).
Segundo artigo 3° do protocolo brasileiro denominado Convenção de Palermo, o tráfico de pessoas é definido como:
“(...) o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos;” (BRASIL, 2004, Artigo 3, a)
Ainda, o fato da Amazônia possuir Estados transfronteiriços, ou seja, com um trânsito populacional interno e internacional, a caracterizou dentro das rotas migratórias venezuelanas como principal local de entrada para o Brasil e países vizinhos. As imigrantes venezuelanas, enquanto mulheres, se encontram atingidas de forma direta pelas escancaradas desigualdades de gênero, principalmente no que diz respeito as situações de precariedade de trabalhos, e acabam por se tornar alvos fáceis do tráfico humano na região.
Diante disso, se faz necessário salientar os objetivos do presente artigo, que busca analisar o processo de feminização das migrações contemporâneas, mais especificamente das venezuelanas na Amazônia e entender como essas mulheres e meninas se tornam umas das principais vítimas do tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual na região.
Os estudos acerca dos processos migratórios da região Amazônica são historicamente abordados sob uma perspectiva masculina, onde o homem se torna o protagonista nas migrações. No entanto, estudos recentes demonstram um aumento no que se chama por feminização das migrações na região (OLIVEIRA, 2014). Isso significa que a mulher migrante passou a ocupar um espaço de foco nas recentes dinâmicas de migração. Ou seja, as migrações femininas passaram então a serem apuradas por indicadores de estudo. Pode-se compreender por feminização das migrações, a inclusão de uma perspectiva de gênero sobre esse fenômenos:
"As teorias entendidas como clássicas que estudam e analisam os fenômenos migratórios tendem a atribuir suas causas ao âmbito econômico e político, interligando diretamente as migrações aos homens – que são entendidos como os provedores da família. Dessa forma, ocorre uma invisibilização, por partes desses estudos, do papel da mulher dentro dos deslocamentos, as tornando sem relevância e totalmente dependentes dos homens, sendo eles seus companheiros ou não." (MOURÃO, 2021, p.04)
Outrossim, existem razões diversas para as migrações dessas mulheres como causas de guerra, catástrofes naturais, perseguição étnica, etc, e no caso da Venezuela, crise política e econômica. Para Oliveira (2013) o descaso relacionado à temática de gênero dentro dos estudos migratórios demonstra, de certa forma, uma relação de dominação nas elaborações teóricas. O que é importante ressaltar é que a inclusão da variável de gênero nessas análises dos fluxos migratórios, se demonstra de grande importância para se traçar os novos perfis de migrantes principalmente a partir do ano de 2016 com o aumento do fluxo vindouros principalmente da Venezuela. Pode-se inferir que as razões pelas quais mulheres venezuelanas migram estão em sua maioria diretamente relacionadas à busca por melhores condições para suas famílias, e para seus filhos. Ou migram para sair de um meio de opressão e exploração, onde sofrem constantes abusos - sejam de cunho psicológicos, físicos ou sexuais.
"Nessa perspectiva, a migração pode ser compreendida como um importante processo de mudanças em que o simples ato de migrar para outra cidade, região ou mesmo para outro país indica uma atitude de autonomia e resistência das mulheres que experimentam importantes processos de ruptura e transformação nas relações sociais e afetivas a partir da experiência migratória." Oliveira (2014, p. 201)
Diante do pressuposto, os Estados da região Amazônica se tornam os principais alvos de deslocamentos para essas mulheres, que enxergam a região como um local de oportunidades e de melhoria de vida.
O que se faz interessante observar aqui é que pesquisadores que estudam a Amazônia pouco se atentam à questões de gênero, em um cenário onde nota-se aumento dos fluxos de migrantes na região atrelado aos altos índices de tráfico. Com isso, um debate acerca dessas mulheres que são “comercializadas” sexualmente se faz urgente. Com a exploração do latéx na região, na segunda metade do século XIX, nota-se a vinda de trabalhadores nordestinos para a região sob o modelo do tráfico humano. Simultâneo ao tráfico de homens, o de mulheres foi sendo exercido em larga escala. (OLIVEIRA, 2009). Ainda, a região em questão é historicamente marcada por relações de exploração e de tráfico humano, onde se fazem presentes desde a entrada de colonizadores submetendo homens livres à escravidão e deixando, consequentemente, mulheres vulneráveis à exploração sexual. “É fato que na seqüência do Ciclo da Borracha, as mulheres continuaram sendo traficadas na Amazônia para fins de exploração sexual nos garimpos e nas casas noturnas de Manaus no apogeu da Zona Franca." (OLIVEIRA, 2009, p.2)
O padrão migratório em que os Estados e cidades da Amazônia estão inseridos vem demonstrando certas singularidades de uma migração transfronteiriça, onde a oferta de vagas de trabalho atrelados a uma esperança de melhoria de condições de vida atrai migrantes venezuelanos para a região. As mulheres venezuelanas se deslocam para a cidade no intuito de encontrar uma alternativa de geração de renda para sua família, estejam eles junto com elas ou no país de origem
Nesse viés, pode-se considerar como fator agravante que condiciona o tráfico de mulheres migrantes vindouras da Venezuela, é o fato de serem vistas como alvos fáceis por não saberem a língua, por muitas vezes viajarem desacompanhadas, e sobretudo pela falta de fiscalização dessas fronteiras. Aliciadores se aproveitam da ingenuidade, prometendo oportunidades de emprego inexistentes. Segundo matéria publicada pela FOLHA DE BOA VISTA, imigrantes são as principais vítimas dos casos de tráfico humano registrado no estado de Roraima. O Núcleo de Atendimento às vítimas de Tráfico de Pessoas, que faz parte da Procuradoria Especial da Mulher da Assembleia Legislativa, divulgou o registro de nove casos de tráfico de pessoas. Seis das vítimas eram mulheres transexuais de nacionalidade venezuelana. De acordo com a coordenadora do Núcleo, Socorro Santos, para a reportagem em questão, é necessário “ficar alerta” em relação ao tráfico humano, e de acordo com ela, mesmo que seja visto como um crime “invisível” é uma triste realidade da região. Pode-se perceber a Amazônia como possuindo os maiores indíces de rotas de tráfico, impactando principalmente mulheres e meninas pouco informadas a respeito dos riscos da prostituição e da exploração sexual em outros países. De acordo com pesquisa realizada pela Empresa Brasil de Comunicação, EBC, estados da Amazônia estão registrados entre os 10 com maiores casos de tráfico humano. Amazonas, Mato Grosso e Pará se encontram na liderança do levantamento. Segundo a matéria, estudos divulgados pela Comissão Pastoral da Terra, CPT, demonstram que entre os anos de 2003 à 2015, dos aproximados 2.900 casos de trabalho forçado, a grande maioria foram registrados na região Amazônica. Diante dos fatos supracitados, podemos concluir que a Amazônia permanece demonstrando um dos maiores índices de rotas de tráfico. A falta de infra-estrutura para o controle das fronteiras, de fiscalização, atrelados à dinâmica migratória da região decorrentes da crise na Venezuela, são fatores que fazem do local vulnerável e suscetível ao tráfico de mulheres para fins de exploração sexual e comercial. (OLIVEIRA, 2009) A ausência de políticas destinadas à proteção dessas mulheres é um dos principais agravantes para a vulnerabilidade ao tráfico internacional. Emerge então, a necessidade de pesquisas e aprofundamento desses temas, uma vez caracterizado a urgência dessas questões, para que assim haja maiores investimentos governamentais destinados a desenvolver redes de proteção à essas mulheres e meninas migrantes.
REFERÊNCIAS:
ALVES, Wodley Gabriel Rocha. Tráfico de mulheres para fins de exploração sexual: estudo de caso no Estado do Amazonas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 ago 2021. Disponivel em: <https://conteudojuridico.com.br/consulta/artigos/56680/trfico-de-mulheres-para-fins-de-explorao-sexual-estudo-de-caso- no-estado-do-amazonas.> Acesso em: 23 ago 2021.
BRASIL. Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004. Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças. DOU, 15 mar. 2004.
ESTADOS DA AMAZÔNIA ESTÃO ENTRE OS DEZ COM MAIS CASOS DE TRÁFICO HUMANO. Empresa Brasil de Comunicação, EBC, 2016. Disponível em: <https://radios.ebc.com.br/jornal-da-amazonia-1a-edicao/edicao/2016-07/estados-da-amazonia-estao-entre-os-dez-com-mais-casos-de> Acesso em 22 de Ago.de 2021
MOURÃO, M.V.A ; RODRIGUES, F.S. VIDAS “OLVIDADAS”: Um estudo preliminar da violência contra mulheres em situação migratória e de refúgio na cidade de Boa Vista-RR-Brasil. Relatório Final de Pesquisa, Boa Vista: PIBIC/CNPQ, 2021.
NOVE CASOS DE TRÁFICO HUMANO SÃO REGISTRADOS EM RORAIMA - Imigrantes são as principais vítimas. Folha de Boa Vista, Boa Vista, 22 de Jul. de 2019. Disponível em: <https://folhabv.com.br/noticia/CIDADES/Capital/Nove-casos-de-trafico-humano-sao-registrados--em-Roraima/55622> Acesso em 22 de Ago. de 2021
OLIVEIRA, Márcia Maria de. Dinâmicas migratórias na Amazônia contemporânea. Tese de Doutoramento, Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia - Universidade Federal do Amazonas. Manaus, p.373, 2014.
OLIVEIRA, Márcia Maria de. TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES NA AMAZÔNIA: DESAFIOS E PERSPECTIVAS. 2010. 8 p. Disponível em: http://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1268240201_ARQUIVO_TraficodemulheresnaAmazonia.pdf. Acesso em: 19 ago. 2021
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO – OIT. Tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. Coord. Cláudia Sérvulo da Cunha. Brasília, 2005.
VASCONCELOS, I.S. SOMOS MADRES DE FAMÍLIA , ESTAMOS AQUÍ PARA TRABAJAR : TRABALHO , ASSÉDIO MORAL E SEXUAL DE VENEZUELANAS EM BOA VISTA- RR. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017
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