por Daniele Thomaselli
O movimento feminista surge na virada do século XVIII para o XIX, sendo guiado por inspirações iluministas da Revolução Francesa e reivindicando uma maior participação sociopolítica das mulheres na sociedade. Em um primeiro momento, a militância feminista é pautada em visões liberais acerca dos mecanismos de dominação patriarcal e é nesse contexto que Olympe de Gourges publica a Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, em resposta à cartilha revolucionária de 1789 que visava estabelecer os direitos essenciais – liberdade, propriedade, segurança e integridade – aos homens, uma vez que as mulheres não tinham cidadania institucionalizada: não podiam votar, não tinham acesso às instituições publicas ou ao trabalho laborial extra-doméstico, entre outras condições.
A teoria feminista, no entanto, passa a encontrar eco nas Relações Internacionais somente nas décadas de 1980 e 1990, quando o terceiro debate insurge em oposição aos paradigmas de teorias tradicionais mainstream - sobretudo realistas - e o gênero passa a ser aplicado como categoria de análise. Intimamente ligada ao pós-positivismo, a teoria feminista é incorporada às RI muito em razão dos estupros usados como arma de guerra e limpeza étnica nos genocídios de Ruanda, Bósnia e Somália, de repercussão global. Cynthia Enloe, em sua extensa obra bibliográfica, por exemplo, analisa os casos de estupro militar de forma a perceber as nuances e relações entre a violência sexual e a violência internacional no contexto de guerra.
Nesse sentido, teóricos da virada construtivista passam a se debruçar sobre a marginalização das mulheres nos espaços de policy-making em que se baseiam os preceitos realistas e liberalistas – e, indo mais além investigam as relações de poder intrínsecas à subalternidade da mulher no âmbito da política internacional. Isso porque as diferenciações de gênero vão além de individualidades: ao mesmo tempo em que oferecem elementos preconcebidos de construção de identidade, moldam discursos e instituições a nível nacional e internacional, colocando o ideal masculino como superior, hierarquizando as estruturas sociais, políticas e econômicas.
J. Anne Tickner (1997, p. 628), teórica feminista anglo-americana de relações internacionais, interpreta as normas de masculinidade presentes nas análises hegemônicas de RI: o comportamento dos estados e estadistas assumem características de um esteriótipo masculino de virilidade – resultado da construção patriarcal. Para Tickner, os Estados são guiados pela maximização dos interesses e competitividade como reflexo de um modelo ocidental de high politics construídas em torno de um ideal de masculinidade e por isso, ela sugere que é necessária, não uma inclusão individual de mulheres na política, mas uma reformulação do fazer política, modificando as dinâmicas conflituosas do sistema internacional. Como afirma Izadora S. do Monte (2013, p. 71) em seu artigo O debate e os debates: abordagens para as relações internacionais: “A progressiva, ainda que tímida, inclusão de mulheres altas esferas decisórias, nas últimas décadas, demonstra que a presença delas nesses espaços não implica necessariamente uma alteração dos comportamentos estatais.”. Ao analisar as dicotomias entre masculinidade e feminilidade, Tickner observa o impacto dessa estrutura de hierarquias sociais na segurança e violência – não só a subjugação dos corpos e forças policiais nacionais, mas também a guerra numa dimensão mais ampla. As dinâmicas de poder intra e extra-estatais são essencialmente relacionais, portanto, existe um esforço constante de manutenção de privilégios que forja a inexpressividade das mulheres no cenário internacional e não dedica políticas públicas a questões consideradas femininas: a violência estrutural se soma a força física.
Além disso, a teoria feminista nas RI também pensa o conceito de fronteiras intransponíveis, refletindo a separação entre público e privado que favorece, internamente aos Estados, a violência doméstica, cotidiana e sistemática, contra as mulheres. A respeito dessa dualidade potencialmente perigosa à integridade das mulheres, Flávia Biroli (2014, p. 33) observa que a construção de uma sociedade democrática depende do abandono às noções de que as esferas pública e privada são lugares distintos, tendo em vista que os arranjos de poderes e direitos em uma afeta diretamente na outra: “O mundo dos afetos é também aquele em que muitos abusos puderam ser perpetuados em nome da privacidade e da autonomia da entidade familiar em relação às normas aplicáveis no espaço público” (p. 34).
Trazendo essa reflexão para o âmbito das Relações Internacionais, é importante considerar a dualidade entre anarquia no sistema internacional e soberania nacional criticada por Richard Ashley (1998, p. 229). Isso porque, na perspectiva realista, construiu-se uma afirmação de segurança e sobrevivência em contraste ao perigo iminente de violência extranacional: essa ideia de segurança no espaço doméstico nega as violências estruturais estatais que se desdobram em razão da subalternidade, exclusão e violência sofrida por grupos de minoria – gênero, classe e raça. Ademais, quando se defende uma soberania inviolável das nações, cria-se um entrave à promulgação dos Direitos Humanos, que continuam não perpetrando as sociedades em sua totalidade e ainda não são uma garantia formalizada pelas políticas nacionais, mesmo após 70 anos da publicação de sua Declaração.
Em suas diferentes correntes de interpretação, as perspectivas feministas contribuem para a formatação de novas óticas a respeito do papel do Estado e do Sistema internacional, além de analisar dilemas de segurança. Enloe (1996, p. 202) compreende que apenas buscando mais profundamente respostas dentro do sistema político, ouvindo atentamente às margens – levando em conta as múltiplas perspectivas para dar maior senso de realidade aos acontecimentos e interpretações, uma vez que internacionalmente existem múltiplos e articulados sistemas de opressão, que somatizam-se ao de gênero-, é possível chegar a conclusões precisas sobre a construção do poder nas RI. Desse modo, pode-se avaliar como o poder impacta na estabilidade que permite que uma elite fale em nome da maioria e tome decisões legítimas dentro desse sistema, apesar de não contemplarem a todos, perpetuando essa exclusão. Existem mais formas de expressão de poder nas relações internacionais do que é convencionalmente admitido.
REFERÊNCIAS
ASHLEY, Richard. Untying the Sovereign State: a Double Reading of the Anarchy Problematique. Millenium – Journal of International Studies, v. 17, n. 2, 1998, pp. 227-262.
BIROLI, Flávia. O público e o privado in MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Feminismo e Política: uma introdução. São Paulo: Boitempo. 1ª ed. 2014, pp. 31-46.
ENLOE, Cynthia. Margins, Silences and Bottom Rungs: How to Overcome the underestimation of Power in the Study of International Relations in SMITH, S.; BOOTH K.; ZALEWSKI, M. (Eds.). International Theory: Positivism and Beyond. Cambridge: Cambridge University Press. 1996, pp. 186-202
MONTE, Izadora S. do. O debate e os debates: abordagens para as relações internacionais. Revista Estudos Feministas, Florianópolis. 2013, pp. 59-79.
TICKNER, J. Anne. You Just Don`t Undestand: Troubled Engagements Between Feminists and IR Theorists. International Studies Quarterly, vol. 41, n. 04, 1997, pp. 611-632.
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