por Juddy Garcez Moron
As Relações Internacionais e as relações internacionais¹ são diversas. Enquanto a primeira categoria recorta os mais diversos campos do saber, a segunda perpassa nossas vidas diárias e não se relega somente ao plano externo. Marcadas por relações díspares de poder, ambas as (R)relações possuem o tempo como pano de fundo existencial. Como apontado por Hom (2018, p.69) “a política internacional não é apenas intrinsecamente temporal, mas também temporalmente diversa.”²
Ainda que não pareça possível definir de forma concreta o que é o tempo, o dicionário Michaelis Online possui dezesseis diferentes significados para o termo³, sendo o primeiro e mais usual deles a noção de que tempo é um “período de momentos, de horas, de dias, de semanas, de meses, de anos etc. no qual os eventos se sucedem, dando-se a noção de presente, passado e futuro.” (TEMPO, 2020) Muito vinculada a questão temporal estão as horas, os dias e tudo aquilo capaz de ‘medir’ nossas experiências diárias. Concebemos o tempo, portanto, sempre em relação a nós ou ‘a humanidade’. Mas, quem é o “nós” e “A humanidade” em Relações Internacionais e nas relações internacionais?
É seguro dizer que tanto na disciplina quanto nas interações internacionais há uma clara dicotomia entre o ‘Eu’ e o ‘Outro’. Nesse sentido, o Eu/Nós é Ocidental, masculino, branco, cisgênero e heterossexual. (COOPER-CUNNINGHAM, 2019) Nessa categorização hierárquica, o Eu/Nós está sempre acima (ou a frente) do Outro. Isto é, temporalmente esse ser-modelo “homembrancocisheteroocidental” está no futuro (ou no presente) enquanto todos aqueles que fogem a essa suposta regra estão no passado. A adoção do tempo como um fenômeno linear, em oposição ao tempo cíclico ou circular, e a ideia de que a história é uma progressão permeiam essas (R)relações. Como apontado por Chamon (2018, p.11), esta formulação temporal se realiza na “linearidade, unidade, continuidade, universalidade, determinação, eternidade, fechamento, controle, domesticação, oportunidade, reconciliação, leis generalizadas, distinções bem definidas, o Estado-Nação, Estado/poder soberano e história progressiva.”
Hom (2018) vai um pouco além: para o autor, a própria noção de tempo determina estabilidade, por isso ele utiliza o termo timing ao invés de time que, nesse contexto, pode ser entendido como uma “temporização” não no sentido de medida temporal, mas de mobilidade do tempo. Nessa abordagem, o timing pode ser ativo ou passivo. Na primeira configuração, há um esforço consciente do agente, bem como uma abertura para a contestação da experiência. Já na segunda, há pouco ou nenhum esforço, não há decisão: o tempo já foi memorizado e é operado subconscientemente. Esta é apenas uma das diferentes visões sobre o tema, que como mostrarei a seguir, é alterada de acordo com os múltiplos debates.
Um exemplo dessa diferenciação é a análise feita por Jordheim e Wigen (2018). Segundo os autores,
A ordem internacional também é uma ordem temporal, baseada no alinhamento, mais precisamente, a sincronização das múltiplas vezes no trabalho em escala global. Sincronicidade entre culturas, linguagens, e política não surgem por si só. Criar ordenações temporais em escala global requer trabalho: político, social e linguístico. [...] Um dos conceitos mais centrais que têm sido usado na sincronização nos últimos dois séculos é o progresso. (JORDHEIM; WIGEN, 2018, p.1)
Ainda para eles, essa narrativa do progresso pode estar em vias de ser substituída pela noção de crise: ainda que adjacente a ideia de progressão, a crise é lida pela história como o avanço através de mudanças graduais ou repentinas (reforma ou revolução). Entretanto, e quase que em oposição, a crise também traz consigo uma nova lógica da modernidade “ao apontar não para o futuro mas para o presente, para o agora, como um local para grandes transformações, um agora de drama, destino e com consequências incertas, abrindo-se para um futuro desconhecido.” (JORDHEIM; WIGEN, 2018, p.11)
É importante percebermos que ambas as noções, progresso e crise, retratam, discursivamente, os interesses de um determinado grupo. Se em um primeiro momento o ‘progresso’ serviu - e ainda serve - como aporte para a colonização e a colonialidade4, a concepção de crise vem para apregoar a securitização internacional. Os três argumentos aqui expostos dialogam, portanto, com as RI e as relações internacionais a partir do momento em que funcionam como base tanto para a nossa narrativa discursiva quanto para a forma como construímos (e reiteramos seguidamente) os nossos mundos e realidades.
Outra conceito que trata do assunto e que é de suma importância é a ideia de “coevalness” ou coevidade em português. Coevidade, ou aquilo que é coevo, refere-se a coexistência em um mesmo tempo. Como bem explicitado por Blanco e Delgado (2019), na colonialidade é negado ao Outro o direito de coevidade, de contemporaneidade, em relação ao Eu/Nós. Isto é, o Outro nunca existe no mesmo tempo que o Eu/Nós. Ele está sempre atrasado, nunca presente ou mesmo futuro. Essa demarcação temporal e consequente denegação existencial do Outro pode ser constatada na utilização de termos como desenvolvido, em desenvolvimento ou subdesenvolvido; na noção de “países em emergência”, que estão sempre ‘subindo’, mas nunca chegando ‘lá’.
A colonialidade e a modernidade, que são dois lados da mesma moeda, consolidam-se, então, por meio da colonização do tempo e do espaço. (MIGNOLO, 2009) Ainda que eu não esteja analisando, necessariamente, a problemática espacial, é pertinente ressaltar que ela também se conecta, em muitos casos ao se separar, da questão temporal. Novamente, alguns territórios e concepções (como o Norte Global ou o ‘Ocidente’) encontram-se a frente, enquanto os demais locais são forçados a ocuparem uma posição subalterna ou passada. O tempo parece pairar acima de tudo, funcionando como engrenagem ahistórica, ‘alocal’, e vagando no espaço.
Para desenvolvermos um diálogo mais crítico e profundo em nossa disciplina é preciso, então, que façamos questionamentos mais intensos sobre os conceitos básicos da nossa disciplina, que eles estejam explícitos ou não, quer pareça algo dado (principalmente se parecer algo dado) ou construído. Só assim faremos as mudanças necessárias nas Relações Internacionais e nas relações internacionais. Notas ¹ As Relações Internacionais são entendidas aqui como a disciplina, ao passo que as relações internacionais fazem parte da política internacional e configuram interações entre os diferentes agentes, sujeitos e objetos sociais do meio internacional (ou mesmo doméstico). ² Essa e outras traduções são da autora. ³ Desses dezesseis significados, dois se relacionam ao esporte, dois a música, um a gramática, um a física, um a metrificação e um a astronomia. (MICHAELIS ONLINE, 2020) 4 Enquanto a colonização pode ser entendida como a administração territorial (colonialismo/neocolonialismo), a colonialidade é a perpetuação da relação desigual de poder e da influência coercitiva que os países colonizadores fazem sobre os colonizados. Ela se configura de diferentes maneiras, dentre elas: a colonialidade do poder, do saber e do ser. (QUIJANO, 2000; MIGNOLO, 2002; BLANCO e DELGADO, 2019) Referências Bibliográficas
Blanco, Ramon; Delgado, Ana Carolina Teixeira (2019) "Problematising the Ultimate Other of Modernity: the Crystallisation of Coloniality in International Politics" Contexto Internacional. 41 (3), 599-619.
Chamon, Paulo (2018) "Turning Temporal: a Discourse of Time in IR" Millennium - Journal of International Studies. 46 (3), 1-25.
Cooper-Cunningham, Dean (2019) "Drawing Fear of Difference: Race, Gender, and National
Identity in Ms. Marvel Comics" Millennium - Journal of International Studies. 48 (2), 1-33.
Hom, Andrew R. (2018) "Timing is Everything: Toward a Better Understanding of Time and
International Politics" International Studies Quarterly. 62 (1), 69–79.
Jordheim, Helge; Wigen, Einar (2018) "Conceptual Synchronisation: From Progress to Crisis" Millennium - Journal of International Studies. 46 (3), 421–439
Quijano, Anibal (2000) "Colonialidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina" in Lander,
Edgardo (Ed.) La Colonialidad del Saber: Eurocentrismo y Ciencias Sociales. Perspectivas
Latinoamericanas. Buenos Aires: CLACSO, 201-246.
Mignolo, Walter D. (2011) The Darker Side of Western Modernity: Global Futures, Decolonial Options. Durham: Duke University Press,
TEMPO. In: Michaelis Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, Dicionário Online. Melhoramentos, 2020. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/busca?id=NymPQ>. Acesso em: 16/10/2020
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