Por:Franciely Portela
Keila Alves
As estruturas clássicas de dominação presentes no Sistema Internacional contribuíram inegavelmente para uma visão deturpada do Oriente através da perspectiva ocidental. Sob influência da ocidentalização de costumes, a sociedade árabe é vista de forma estereotipada seja por características ameaçadoras relacionadas sobretudo ao Estado Islâmico, seja pela representação da “mulher oriental” como um ícone oprimido e oposto à “mulher ocidental” (FIGUEIREDO; FERREIRA; CASTRO, 2020). Essa interpretação errônea dos fatos prejudica constantemente a forma como os conflitos ocorridos no Oriente são enxergados pelo resto do mundo; ainda que na parte ocidental do globo existam acadêmicos dedicados aos estudos pós-coloniais e de decolonialidade, que buscam trazer uma compreensão da realidade do povo oriental a partir de todas nuances envolvendo contextos culturais, se nota, principalmente no meio midiático, a representação do Oriente como uma localidade caótica, sem o devido aprofundamento nas implicâncias que movimentos políticos, sociais, econômicos, culturais e religiosos têm sobre as vidas da população da região.
O debate relacionado à igualdade de gênero tem seu papel na dualidade Oriente versus Ocidente quando usado como uma unidade de análise, para especular a capacidade da civilização oriental em estar alinhada ao que seriam os padrões ocidentais de relações de gênero. Se tratando da mulher de religião muçulmana, sua imagem é frequentemente interpretada como “vítima de um véu que apaga todos os traços de identidade, mulheres transformadas em uma massa uniforme, tristes e submissas, vestidas de preto da cabeça aos pés e submissas aos homens da sua sociedade.” (FIGUEIREDO; FERREIRA; CASTRO, 2020, p. 82), quando em realidade, para inúmeros grupos de mulheres o uso do hijab vai além de uma expressão religiosa de suas crenças, sendo também um protesto contra o preconceito e os estigmas de opressão relacionados às comunidades muçulmanas, e uma forma de proteção contra a “sexualidade masculina predatória” (FIGUEIREDO; FERREIRA; CASTRO, 2020).
A Síria, país localizado no Oriente Médio e um dos berços das primeiras civilizações, é uma das nações tidas como “eixo do mal”, conforme declarações do ex-presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, baseado nos conflitos e períodos de instabilidade política e social do país. A partir das ondas de protestos ocorridas em 2011 que deram início à Primavera Árabe, a imagem da Síria, junto aos demais povos árabes envolvidos, passou estar atrelada ao terrorismo, rebeldes empenhados em derrubar o governo, mortes em grande número, opressão e uma crise de refugiados sem precedentes. Mesmo que a representação do conflito esteja, em partes, acurada, os povos orientais não deixaram de protestar por condições de vida mais dignas, exigindo, conforme Souza et al., “seus direitos políticos e um regime democrático, repudiando o desemprego e a corrupção.” (SOUZA; PEIXOTO; CORREA; CISCOTTO; SANTOS, [2017]).
Em meio a crescente ameaça e influência do Estado Islâmico decorrente dos conflitos extremistas, nasce uma forte resistência contra os ataques à cidade de Kobanê, no norte da Síria. O “heroísmo curdo”, como é chamado por Miranda (2016) passou a ser visto pelas democracias ocidentais como um aliado contra o terror fundamentalista islâmico. Tal como o início da Primavera Árabe, a brava e destemida atuação da população curda da Síria passou a ser amplamente divulgada pelos meios midiáticos, com uma ênfase extraordinária nas combatentes mulheres. Conforme Oliveira (2021), o povo curdo busca a autonomia da região do Curdistão devido aos constantes ataques e perseguições sofridos pelos países entre os quais está dividido: Turquia, Irã, Iraque e Síria. Para Miranda (2016) e Oliveira (2021), nesse cenário as mulheres curdas sofrem uma “dupla discriminação”, fruto de seu gênero e sua nacionalidade, o que justificaria sua luta constante contra as formas de opressão patriarcais e assimilacionistas, aderindo a “um movimento de libertação comprometido com uma profunda transformação social mediante a liberação feminina.” (MIRANDA, 2016, p. 2).
Em meio às expectativas fundamentadas pelas guerrilheiras, a chamada Revolução de Rojava — sendo Rojava a parte síria do Curdistão — passou a ser enxergada não apenas como a defesa de linha de frente contra a expansão territorial do Estado Islâmico, mas também como uma materialização dessa ideologia de liberação feminina, buscando não a “criação de um novo Estado”, mas a possibilidade de se implantar no Oriente Médio uma nova sociedade baseada em democracia e igualdade de gênero (MIRANDA, 2016).
Os Principais Impactos do Movimento Feminista Curdo
Fonte: Green Left
O território de Rojava, localizado no Norte na Síria, é considerado o berço de um movimento revolucionário e contra o patriarcalismo estrutural. A Revolução de Rojava foi ignorada em meios aos conflitos do Oriente Médio, entretanto, ela possui uma importante diferença quando comparada a outros casos: a forte presença de mulheres na luta de frente de uma guerra armada. Esse movimento de mulheres procurou sobretudo, a libertação feminina e simultaneamente, implementar uma democracia direta no sistema político local. Portanto, o objetivo principal da conhecida ‘Revolução mais Feminista já vista” foi romper o sistema patriarcal capitalista. (BERNARDO, 2020)
Diante das origens que direcionaram a Revolução de Rojava, é importante destacar que toda a trajetória de mulheres curdas nesse movimento feminista contribuiu para a emancipação e libertação curda. O feminismo desenvolvido pelas mulheres de Rojava foi fundamental para que a Revolução tivesse sucesso. Com isso, a Revolução das Mulheres de Rojava pode ser considerada uma revolução feminista que criticou intensamente o patriarcado. Essa luta interseccional representa uma batalha por questões de espaço e reconhecimento feminino. De acordo com suas próprias demandas, as mulheres curdas criaram um feminismo único que atendesse às suas particularidades.
Ademais, esse movimento de libertação das mulheres curdas teve em sua base os ideais propagados por Abdullah Ocalan, o qual declarou que “ O povo curdo não será livre enquanto as mulheres não forem”. Essa frase representa a relevância dessas mulheres que resistiram e lutaram de diferentes formas, tais como diretamente no conflito armado e dentro do âmbito político e social. Por conseguinte, é notável como o movimento das mulheres de Rojava foi em contrapartida ao padrão de Estado-nação presente no ocidente, isso porque a presença de mulheres na militarização é uma ruptura para com as construções sociais masculinizadas predominantes nas sociedades patriarcais. Concomitantemente, é possível dizer que a luta armada dessas mulheres representa uma situação de autodefesa, contexto no qual elas objetivam lutar diretamente pela própria liberdade, ao invés de ocuparem uma posição secundária na revolução desencadeada. Conforme Bernardo (2020), os princípios defendidos por Ocalan inferem que a organização das mulheres deve ir à frente de todas as outras por conta da opressão triplicada advinda do Estado, sistema capitalista e do patriarcado ao mesmo tempo. Em razão disso, foi criada a YPJ, uma Unidade de Proteção para as Mulheres, a qual atua como uma espécie de exército autônomo direcionado exclusivamente para a autodefesa feminina. Portanto, ele pode ser interpretado como um instrumento de transgressão referente aos aspectos estruturais de dominação masculina, os quais possuem raízes históricas e sociais. A YPJ conta atualmente com cerca de sete mil guerrilheiras, número que cresce a cada dia devido ao ingresso constante de mulheres curdas nas unidades.
Fonte: Contraponto Digital
Além disso, também foram criados Institutos de Jinealogia, destinados à educação de mulheres sobre a importância de estabelecer uma nação democrática. Nesses institutos educacionais as mulheres estudam sobre uma longa amplitude de fatores e temas, mas sempre focando na perspectiva de que a educação é crucial para a garantia da igualdade de gênero. Além do mais, elas aprendem a como construir um movimento e assim, implementam uma estrutura muito mais abrangente em termos de diversidade, pautada principalmente num currículo interseccional que pretende substituir o ensino defasado e ultrapassado para as mulheres.
A atualidade do Movimento de Mulheres: desmistificando a mídia ocidental
É preciso compreender o protagonismo feminino em meio à guerra e observar seus impactos. As mulheres curdas que buscam uma revolução, também procuram por segurança internacional e emancipação. Elas querem quebrar a visão que as coloca como vítimas e ignora suas lutas constantes por segurança. De acordo com Martins (2020), elas desejam romper com a perspectiva estadocêntrica que as marginaliza e diminui a urgência de suas demandas. Desmistificando ideias patriarcais e desafiando o sistema, as mulheres de Rojava querem incorporar um processo identitário social à agenda de segurança. Logo, o Feminismo está se fortalecendo desde a Revolução Curda, considerando que as minorias seguem ganhando voz e a sociedade vem resistindo e lutando em defesa de um Estado democrático.
Fonte: Isto é
Em Gimenez (2021) é pautado que as combatentes curdas pertencentes à YPJ tiveram uma grande atenção da mídia ocidental recentemente, se tornando parte de revistas e jornais com alta propagação na Europa e no território norte-americano. O fato de existir uma brigada militar feminina em meio ao Oriente Médio trouxe de fato um maior reconhecimento para a causa das mulheres curdas de Rojava. Entretanto, é necessário analisar essa conjuntura, considerando que essa repercussão atual pode ter uma perspectiva limitada, em razão de uma visão ocidentalizada constantemente utilizada e que ignora as especificidades dessa luta revolucionária. É preciso, portanto, desmistificar estereótipos disseminados pela mídia ocidental e liberal em torno desse movimento de mulheres, principalmente porque categorizá-las e tratar dessa temática de forma superficial, termina por diminuir e omitir diversos aspectos relevantes dessa revolução feminista. Representações errôneas e sensacionalistas escondem a história e motivações ideológicas e políticas por trás de todo esse processo.
Fonte: Rádio Caxias
Em vista disso, é necessário que o reconhecimento do trabalho realizado pelas mulheres curdas seja muito mais aprofundado e que inclua como pautas principais o desenvolvimento de uma sociedade com igualdade de gênero e de uma democracia não-estatal. Além disso, é fundamental que venha à tona a diversidade do povo curdo, que ocupa atualmente não só a Síria, mas como também outros países tais como o Iraque, Irã, Turquia e Armênia. Ademais, é crucial que a YPJ seja encarada como um importante projeto realizado pelos curdos da Síria. Assim como abordado por Gimenez (2021), infelizmente, a luta feminina curda é ignorada assiduamente principalmente no tocante à participação no conflito armado que vem acontecendo por décadas, como também, no que se refere à atuação dessa população anterior à guerra síria e contra o Estado Islâmico.
Enloe (2005) explica que pelo fato dos homens serem maioria em guerrilhas de organizações militares, as mulheres combatentes são enxergadas como fora de seus papéis “tradicionais”. O homem sempre esteve ligado ao militarismo, segundo as construções sociais do sistema patriarcal e os papéis de gênero reproduzidos constantemente por ele na sociedade. Por conseguinte, as guerrilheiras da YPJ rompem com essa perspectiva e questionam portanto esses condicionamentos. Dito isso, as curdas que enfrentam esses conflitos armados como combatentes acabam por desafiar as estruturas de poder predominantemente masculinas e são vistas como uma ameaça por outros homens, o que influencia na estigmatização dessas mulheres em diversos espaços. Quanto às representações estereotipadas das mídias ocidentais, é preciso problematizar a questão do foco na aparência física das mulheres de Rojava, considerando que esse comportamento reforça a sexualização do corpo feminino. Existe com isso, uma forte apropriação da luta das mulheres curdas para objetivos totalmente sensacionalistas.
Num contexto mais atual, ainda segundo Gimenez (2021) do Observatório Feminista de Relações Internacionais, situações como a retirada das tropas americanas do território de Rojava, a guerra que aflige a Síria e o contexto pandêmico têm contribuído para a intensificação da violência contra as mulheres curdas e guerrilheiras, principalmente por parte de ataques do Estado Islâmico. Nesse cenário, as mulheres têm enfrentado graves tentativas de silenciamento e além disso, foram esquecidas pela mídia internacional e pelo governo dos Estados Unidos, que antes fornecia ajuda para essas tropas femininas. Por isso, é importante que essa população ganhe mais visibilidade, reconhecimento e apoio de outras nações nesse momento marcado por violência e desamparo.
Considerações finais
De forma muito bem colocada por Miranda (2016), enquanto, ao redor do mundo não é comentada a responsabilidade atrelada ao Ocidente nos conflitos do Oriente Médio, a mídia lucra com afirmações sensacionalistas que escondem a realidade das mulheres de Rojava. Milhares de homens e mulheres têm perdido suas vidas por uma luta complexa e extensa que, infelizmente, a comunidade internacional ignora. Esse esquecimento tem tido efeitos nocivos, principalmente para as guerrilheiras que defendem seus direitos. O abandono dos Estados quanto a essa causa, sobretudo dos Estados Unidos, tem colaborado fortemente para o ressurgimento do Estado Islâmico nesse território sírio. Vista como ameaça tanto pelo sistema patriarcal, quanto pelos terroristas, a população curda sofre com a violência desumana enquanto combate a desigualdade de gênero e defende a liberdade de seu povo. Conforme Miranda (2016), essa luta não iniciou como uma resposta ao Estado Islâmico, e essa organização de origens fundamentalistas não seria a única força oposta aos curdos. As mulheres que estão envolvidas no conflito não são as primeiras ou sequer as últimas a estarem segurando armas, no entanto sua contribuição para a movimentação política da região curda caracteriza uma contemporaneidade na qual a igualdade de gênero é a base das relações, ainda que em cenário de guerra.
Referências
BERNARDO, Renata. MARTINS, Júlia. A questão da revolução das mulheres de Rojava: uma ótica feminista. UFGD, 2020. Disponível em: https://ocs.ufgd.edu.br/index.php?conference=sari&schedConf=xsari&page=paper&op=view&path%5B%5D=986. Acesso em: 02 set. de 2021.
ENLOE, Cynthia. What if patriarchy is “the big picture”?: An afterword. Gender, conflict, and peacekeeping. Oxford: Rowman & Littlefield, 2005.
FERREIRA, Bruna de Fátima. Mulheres em Rojava: da organização nacionalista à autonomia democrática. Um estudo sobre a organização autônoma do movimento. BDTD-UERJ, 2017. Disponível em: http://www.bdtd.uerj.br/handle/1/15574. Acesso em: 01 set de 2021
FIGUEIREDO, Nielle. FERREIRA, Neylane. CASTRO, Brenda. O feminismo no âmbito das Relações Internacionais: Ocidente x Oriente e o protagonismo da mulher muçulmana. Revista Malala [online]. 2020, v. 8. [Acessado 01 Set 2021], p. 71-86. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/malala/article/view/161694/167298.
GIMENEZ, Leticia. Guerrilheiras Curdas em Rojava: A luta armada das mulheres no território autônomo do pôr do sol. Observatório Feminista de Relações Internacionais, 2020. Disponível em: https://ofri.com.br/guerrilheiras-curdas-em-rojava/. Acesso em: 02 set. 2021.
MIRANDA, Sarah Siqueira de. Por uma “dupla revolução”: movimento de mulheres curdas na luta contra a opressão étnica e de gênero. PINEB/UFBA, 2016.
OLIVEIRA, Keity. Mulheres Curdas: resistência e protagonismo feminino no Oriente Médio. 2021. Disponível em: https://internacionaldaamazonia.com/2021/07/07/mulheres-curdas-resistencia-e-protagonismo-feminino-no-oriente-medio/. Acesso em: 01 set. 2021.
SOUZA, Carlos Eduardo Cardoso; PEIXOTO, Diego Madureira; CORREA, Flávio Barros; CISCOTTO, Renato Moreira; SANTOS, Walter Augusto Magalhães. A guerra civil na Síria: atores internos, jogos de poder e possíveis reflexos para o Brasil a partir da situação dos refugiados desse conflito. Disponível em: https://www.defesa.gov.br/arquivos/ensino_e_pesquisa/defesa_academia/cadn/artigos/xiv_cadn/a_guerra_ci vil_na_siria.pdf. Acesso em: 31 Ago 2021.
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