Emily Barbosa
Em um mundo globalizado, as possibilidades de migração são inúmeras e a possibilidade de prestar diferentes serviços em países distintos também se tornou uma demanda da contemporaneidade. Nesse sentido, a realidade das trabalhadoras domésticas migrantes é uma faceta complexa e essencial para a compreensão das negligências sistêmicas do panorama laboral contemporâneo.
Existe, portanto a possibilidade de migração para exercer serviços de cuidado no entanto a convergência de fatores sociais, políticos e econômicos determinam um ambiente propício para a manutenção de elementos da violência estrutural, que sujeitam a classe das trabalhadoras de cuidado a uma sensação constante de insegurança tendo em vista a sua fragilidade dentro da divisão internacional do trabalho.
É nesse contexto que se apresenta a realidade Canadense, segundo o relatório “Tendências Globais de Migração 2020”¹ publicado pela Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), o Canadá está nos top 5 países que mais receberam migrantes, com 2,9 milhões de migrantes recebidos. Outras estatísticas gerais sobre a imigração no país, como o “Perfil dos trabalhadores domésticos no Canadᔲ publicado em 2018 indica que 92% dos 60.000 trabalhadores domésticos no Canadá são migrantes, a nacionalidade desses migrantes em busca de trabalho perpassa: Filipinos, Indianos, Chineses, Americanos, Britânicos, Brasileiros, Mexicanos, Colombianos e Nigerianos³. Apesar do comprovado fluxo e presença das trabalhadoras domésticas migrantes no Canadá, inúmeros são os casos de negligência desse contexto, como é o caso de Tejada.
Em 2003, Juana Tejada chegou ao Canadá como trabalhadora doméstica, sob o Programa de Cuidador Residente Live-in Caregiver Program, projeto governamental que permite que trabalhadores estrangeiros exerçam funções de cuidado enquanto vivem na residência de seus empregadores. Sua jornada nesse regime de trabalho atravessou inúmeras formas de violência, também reforçadas por diversas outras trabalhadoras por meio de seus relatos, a ativista ganhou reconhecimento pela disputa contínua pela obtenção da residência permanente, constantemente negada dado o diagnóstico de um câncer agressivo. Com o apoio de grupos de ativismo sobre o direito da mulher migrante, em 2008 a trabalhadora recuperou os gastos de despesa médica e o direito de permanência no país - no ano seguinte, no Dia Internacional das Mulheres, Tejada faleceu no General Hospital em Toronto.
O caso de Tejada, inspirou inúmeros movimentos organizados em busca de melhores condições para as trabalhadoras domésticas migrantes no Canadá, em 2010 uma emenda à Lei de Imigração e Proteção de Refugiados foi aprovada, a “Lei Juana Tejada” (Immigration and Refugee Protection Act) determinou que cuidadores estrangeiros não precisam de um segundo exame médico ao solicitar residência permanente.
São casos como esse que exemplificam que o país não dispõe de mecanismos o suficiente para garantir a segurança ou futura permanência dessas mulheres no território. O Canadá não é exclusivo nessa dinâmica mas é um grande exemplo tendo em vista o seu atrativo migratório.
Mas quem são essas mulheres que migram? A tendência é que o fluxo de migração feminino seja proveniente do Sul Global, reforçando uma estrutura que reproduz a dominação colonial, esse processo de globalização contemporâneo pode ser analisado pelos atravessamentos do impacto do neoliberalismo que influencia as possibilidades de mobilidade de determinados grupos sociais e culturais (BARBER, 2008). Como reforçam (BARBER, 2008; BAKAN & STASIULIS, 1997) a mobilidade do capital envolve o esforço de suprir a mão de obra de cuidado de países desenvolvidos, atraindo migrantes de países com históricos de instabilidade política e econômica que se refletem no alto número de Filipinas, Chinesas e Indianas migrantes no país. Esse conjunto de trabalhadoras estrangeiras formam uma parte significativa da migração internacional que enfrentam exploração e abusos generalizados.
Mas apesar do contexto contemporâneo, esse processo de exploração de trabalhadoras do terceiro mundo no contexto canadense remonta desde a sua formação enquanto confederação.
Em 1867, o Canadá “recrutava” mulheres do ocidente como esposas, serviçais ou empregadas onde desde o princípio era adotado o modelo de moradia na casa do empregador , e após um ano essas mulheres tinham a sua cidadania garantida (BHUYAN, 2018; BAKAN & STASIULIS, 1994).
A questão da “racialização” aparece a partir da Segunda Guerra Mundial, onde a nova onda de recrutamento para trabalhadoras domésticas dispõe de pré -requisito para mulheres jovens e migrantes, inicialmente de países caribenhos, por meio de um acordo conhecido como Caribbean Domestic Scheme, envolvendo os governos do Canadá, Jamaica e Barbados, essa disposição permitia a elegibilidade para residência permanente após um ano, esse programa teve fim em 1973 (KHAN, 2009).
De 1973 a 1981, as trabalhadoras domésticas estrangeiras foram negadas de perspectivas de cidadania e puderam trabalhar no Canadá apenas com autorização de emprego temporário, sendo incorporadas no Canada's Temporary Employment Authorization Program, também conhecido como Foreign Domestic Movement Program, ambas prerrogativas envolviam a Non-Immigrant Employment Authorization Program (NIEAP). Somente em 1992, o programa foi reformado e renomeado como Live-in Caregiver Program, o novo programa recebeu em sua grande maioria mulheres migrantes das Filipinas e permitia a elegibilidade para residência permanente após 24 meses (acumulação de horas de trabalho), permitindo o patrocínio para membros da família (BHUYAN, 2018). Ou seja, até 1992 o sistema “live-in” não era uma programa específico mas sim uma modalidade dentro de um sistema de migração de longa data, buscando suprir o déficit de trabalhadoras no Canadá e a partir de 1992, o programa passa a ser conhecido como Live-in Caregiver Program.
O novo nome, busca refletir melhor a sua natureza e formalizou requisitos mais rigorosos, como: ao menos seis meses de experiência prévia em cuidados, comprovação de proficiência na língua e educação equivalente ao ensino médio canadense. Além disso, as cuidadoras também precisavam ter um contrato de trabalho assinado com um empregador canadense antes de chegar ao país.
Até 2009, as cuidadoras residentes deveriam acumular um determinado número de horas de trabalho para se qualificarem para residência permanente, mas a quantidade exata variava ao longo dos anos, no mesmo ano uma alteração exigia que as trabalhadoras acumulassem pelo menos 3.900 horas de trabalho para a qualificação de residência permanente. Entre 2009 e 2014, também impulsionado pelo alto fluxo de mão de obra de cuidado, o programa sofreu uma série de alterações nos seus requisitos, como a extensão do prazo para completar as horas de trabalho exigidas, avaliação mais rigorosa da oferta de emprego e situação financeira do empregador e treinamento adicional na área de cuidados infantis ou geriátricos; apesar dessa série de novos requisitos o grande atrativo dessa nova modalidade , envolvia justamente a possibilidade de residência permanente e a possibilidade de “patrocinar” o visto de parceiros e filhos (BAKAN & STASIULIS, 1997).
Em Novembro de 2014, o programa Live-in encerrou e um novo programa piloto de cinco anos retirava a obrigatoriedade do Live-in e adicionava dois novos requisitos para a residência permanente: proficiência em Inglês ou Francês para elegibilidade e o equivalente a quatro anos de educação pós secundária no exterior ou um ano de educação pós secundária no Canadá.
Em 2017, um novo programa piloto foi introduzido com foco para cuidadores para Crianças ou para Pessoas com Necessidades Médicas, buscando flexibilizar os requisitos de elegibilidade e o processo de residência permanente. Em 2019, as antigas modalidades são encerradas e passam a ser aceitas novas solicitações pelos programas Caring for Children ou Caring for People with High Medical Need, que permite o trabalho em tempo integral e a possibilidade de aplicar para residência permanente após dois anos de trabalho de qualidades e menos exigência em relação a equivalência dos estudos.
A nível contemporâneo, o debate em relação a migração canadense também perpassa a concepção de países desenvolvidos e subdesenvolvidos, tendo em vista que é uma questão essencial de incentivo para a migração daqueles que provêm de países com baixa probabilidade de ascensão econômica e dependentes do fluxo de dinheiro estrangeiro. Como exposto de maneira introdutória, segundo o relatório de “Tendências Globais de Migração 2020”⁴ publicado pela Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), o Canadá está nos top 5 países que mais receberam migrantes, com 2,9 milhões de migrantes recebidos, assim como o “Perfil dos trabalhadores domésticos no Canadá”⁵ publicado em 2018 indica que 92% dos 60.000 trabalhadores domésticos no Canadá são migrantes, a nacionalidade desses migrantes em busca de trabalho perpassa: Filipinos, Indianos, Chineses, Americanos, Britânicos, Brasileiros, Mexicanos, Colombianos e Nigerianos⁶. Tendência reforçada pelo Relatório 2020 Annual Report to Parliament on Immigration do Governo do Canadá que mostra uma tendência de permanência da predominância da migração de mulheres do Sul global.
Delimitando portanto, um fluxo específico de migrantes que ainda permanece. Essa dinâmica é vantajosa para o Canadá, tendo em vista que a presença de migrantes temporários ou permanentes faz parte de um modelo de renovação de mercado de trabalho que incentiva o crescimento econômico nacional e a competitividade. Ao limitar as condições de visto, o Estado garante a competitividade contínua enquanto se utiliza de mão de obra barata, com os custos de reprodução social deslocados para o país de origem.
De maneira geral, as novas prerrogativas e novos programas impulsionados pelo governo Canadense desde 1973 apresentam tentativas constantes de equilibrar a demanda de ausência de mão de obra de cuidado nacional e o fluxo migratório no país, a jornada do Canadá nesse cenário complexo demonstra a importância de observar as especificidades da dinâmica de relação do trabalho doméstico migrante no contexto de mercado globalizado neoliberal.
Nesse sentido, é possível compreender a política de imigração desempenha um papel intrínseco e multifacetado na dinâmica da violência contra as mulheres migrantes do sul global no contexto canadense. Compreender a origem dessas mulheres é compreender as estruturas sociais e econômicas que conspiram para a manutenção do seu status de fragilidade, possibilitando delimitar a atuação da violência estrutural. Nesse sentido se compreendeu que parte das ausência de reconhecimento das trabalhadoras domésticas enquanto trabalhadoras independentes, tendo em vista a dependência associada a residência, envolve o reconhecimento das dinâmicas de gênero, além de diferenciar essas mulheres diante da dinâmica do capitalismo global, ao compreender que por essência não são mulheres brancas que estão sofrendo o processo de precarização de acesso a direitos.
Em suma, diante da complexidade da questão apresentada se propõe um debate produtivo a nível da possibilidade de garantia de direitos para as mulheres migrantes no contexto globalizante.
Referências
BARBER, Pauline Gardiner. The ideal immigrant? Gendered class subjects in Philippine-Canada migration. In: Globalisation and Migration. Routledge, 2013. p. 39-59.
BAKAN, Abigail B.; STASIULIS, Daiva. Negotiating citizenship: the case of foreign domestic workers in Canada. Feminist review, v. 57, n. 1, p. 112-139, 1997.
BHUYAN, Rupaleem et al. Responding to the structural violence of migrant domestic work: Insights from participatory action research with migrant caregivers in Canada. Journal of Family Violence, v. 33, p. 613-627, 2018.
KHAN, Sabaa A. From labour of love to decent work: Protecting the human rights of migrant caregivers in Canada. Canadian Journal of Law and Society/La Revue Canadienne Droit et Société, v. 24, n. 1, p. 23-45, 2009.
¹Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). (2020). Tendências globais de migração: visão geral. https://www.acnur.org/portugues/tendencias-globais.html
²Governo do Canadá. (2018). Perfil dos trabalhadores domésticos no Canadá. https://www.canada.ca/en/immigration-refugees-citizenship/corporate/publications-manuals/research/foreign-domestic-workers-profile.html
³https://www.canada.ca/en/immigration-refugees-citizenship/corporate/reports-statistics/annual-report-parliament-immigration-2020.html.
⁴Agência das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). (2020). Tendências globais de migração: visão geral. https://www.acnur.org/portugues/tendencias-globais.html
⁵Governo do Canadá. (2018). Perfil dos trabalhadores domésticos no Canadá. https://www.canada.ca/en/immigration-refugees-citizenship/corporate/publications-manuals/research/foreign-domestic-workers-profile.html
⁶https://www.canada.ca/en/immigration-refugees-citizenship/corporate/reports-statistics/annual-report-parliament-immigration-2020.html.
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