por Deborah Lopes,
Franciely Portela e
Isabela Mendes
Durante muito tempo os corpos das mulheres foram considerados públicos ou experimentos da sociedade. Carole Pateman (1993) avaliou essa subordinação feminina à exclusão das mulheres na vida pública, ou seja, os direitos das mulheres estavam subordinados à lógica dos direitos dos homens, doravante direitos patriarcais, e aqueles se restringiam à esfera privada, o que dizia a respeito apenas aos cônjuges do matrimônio ou a família da mulher. Isso gerou uma consequência extremamente nociva às mulheres, uma vez que os homens que detinham o conhecimento dos corpos femininos, como nos mostra Liv Strömquist (2018).
Dessa forma o entendimento acerca da saúde feminina, bem como as políticas para melhorar a qualidade de vida delas foram formuladas por quem não compreendia todas as implicações que o corpo feminino demandava, causando a marginalização da população feminina e o desconhecimento de seu próprio corpo. Foucault (1999) já analisava que o sexo era uma das ferramentas usadas nas relações de poder, uma vez que era evocado para controlar e subordinar a pessoa envolvida, essa ideia de Foucault foi considerada inovadora, pois saía da esfera do Estado e entrava nas micro-formas de poder na sociedade.
Quando analisamos a teoria de Foucault somada às questões femininas, vemos o controle dos corpos das pessoas, principalmente das mulheres em diversas situações, sobretudo, no aspecto íntimo. Essa política formulada ao longo do tempo pelos homens gera impactos até hoje, sendo um deles a questão menstrual, pois durante muito tempo era considerada um tabu ou até uma “palavra proibida”. Em razão de um maior conhecimento e reconhecimento acerca da pluralidade de corpos e orientações sexuais, a questão da menstruação não está mais ligada apenas às mulheres, mas também aos homens transsexuais e pessoas não-binárias. Essa fase da vida dessas pessoas requer especial atenção, pois pode impactar diretamente em seu psicológico.
Como esse assunto sempre era lidado na esfera privada, pouco caso se fez acerca das assimetrias causadas pela menstruação; foi daí que surgiu o conceito da pobreza menstrual, uma forma criada por grupos feministas para levar informação, ajuda e, principalmente, colocar em evidência um problema que atinge muitas pessoas.
Pode-se entender por pobreza menstrual a vulnerabilidade a qual são submetidas as pessoas menstruantes devido à precariedade do saneamento básico, por fatores econômicos e sociais, pela falta de conhecimento adequado sobre os cuidados a serem tomados ao longo da menstruação, além da escassez de itens de higiene como protetores e absorventes. Essa precariedade das condições básicas de saúde pública torna a pobreza menstrual um fator estritamente relacionado à desigualdade entre os gêneros, pois as pessoas que possuem o órgão genital feminino têm, caracteristicamente, necessidades biológicas específicas, tornando-se tendencialmente as mais afetadas pela falta de saneamento básico e água tratada (ASSAD, 2021).
A pobreza menstrual ultrapassa os limites da higiene pessoal, sendo uma problemática relacionada à falta de infraestrutura, recursos e conhecimento populacional quanto ao assunto, afetando não apenas brasileiros, mas indivíduos ao redor de todo o globo. Ainda que, em 2014, a Organização das Nações Unidas tenha reconhecido como uma questão de direitos humanos e saúde pública o direito das mulheres à higiene menstrual, e seja celebrado em 28 de maio o Dia Internacional pela Dignidade Menstrual, um estudo recente divulgado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), aponta que cerca de 6,5 milhões de meninas brasileiras residem em casas sem ligação à rede de esgoto, 900 mil não possuem água canalizada e, aproximadamente, 713 mil não têm sequer acesso a banheiro ou chuveiro em suas residências (UNICEF, 2021).
A falta de acesso à água é um agravante ao exercício básico de higiene necessário durante o período menstrual. A troca de absorventes, a higienização de coletores menstruais em água corrente e o ato de lavar toalhas e roupas utilizadas a fim de evitar a proliferação de bactérias são ações que, apesar de simples, não são possíveis de serem realizadas quando o acesso à água é escasso. E, além da falta de água, as condições financeiras também devem ser levadas em consideração, visto que, conforme Neumam (2021), a menstruação começa a ocorrer por volta dos 12 anos de idade, e as meninas, meninos transexuais e não binários, tornam-se dependentes de seus familiares para adquirir absorventes. Quando suas famílias passam por dificuldades financeiras, como se espera um olhar atencioso para essa necessidade? Considerando que, em condições de respeito aos direitos básicos, adolescentes dessa faixa etária frequentam instituições de ensino, Queiroz (2021) aponta que uma em cada quatro mulheres — conforme pesquisa realizada pela empresa Always — faltou à aula durante o período menstrual por não possuir absorventes. De acordo com “Pobreza Menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos”, relatório da UNICEF e UNFPA, mais de 4 milhões desses estudantes menstruantes não têm acesso nas escolas aos itens mínimos de cuidados menstruais (UNICEF, 2021).
O senso comum acredita que essa realidade é vivida meramente em países onde a maioria da população é pobre, mas no Brasil, ainda que apenas a situação das mulheres encarceradas tenha maior notoriedade, a pobreza menstrual é uma questão importante, pois mesmo nas grandes metrópoles brasileiras há jovens sem acesso à recursos para uma menstruação digna. No Brasil, 13,6 milhões de pessoas — o que corresponde a 6,5% da população — vivem em extrema pobreza, isto é, com 151 reais por mês, enquanto cerca de 51,5 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza. Conforme o relatório da UNICEF/UNFPA, a pobreza menstrual é caracterizada pelos seguintes pilares:
falta de acesso a produtos adequados para o cuidado da higiene menstrual tais como absorventes descartáveis, absorventes de tecido reutilizáveis, coletores menstruais descartáveis ou reutilizáveis, calcinhas menstruais, etc., além de papel higiênico e sabonete, entre outros;
questões estruturais como a ausência de banheiros seguros e em bom estado de conservação, saneamento básico (água encanada e esgotamento sanitário), coleta de lixo;
falta de acesso a medicamentos para administrar problemas menstruais e/ ou carência de serviços médicos;
insuficiência ou incorreção nas informações sobre a saúde menstrual e autoconhecimento sobre o corpo e os ciclos menstruais;
tabus e preconceitos sobre a menstruação que resultam na segregação de pessoas que menstruam de diversas áreas da vida social;
questões econômicas como, por exemplo, a tributação sobre os produtos menstruais e a mercantilização dos tabus sobre a menstruação com a finalidade de vender produtos desnecessários e que podem fazer mal à saúde e,
efeitos deletérios da pobreza menstrual sobre a vida econômica e desenvolvimento pleno dos potenciais das pessoas que menstruam.
Pessoas menstruantes que não têm acesso adequado a produtos de higiene menstrual improvisam soluções com pedaços de pano usados, roupas velhas, jornal ou até mesmo miolo de pão. As consequências da menstruação indigna envolvem desde alergias e irritações até infecções e Síndrome do Choque Tóxico, complicação crítica que deve ser tratada com emergência. Para além da questão de saúde física, jovens deixam de ir à escola por medo de “vazamentos”, que levam ao constrangimento (UNFPA/UNICEF, 2021, p.11). Este ano, as deputadas estaduais de São Paulo Marília Arraes e Tabata Amaral propuseram um projeto de lei, sancionado dia 12 de julho em São Paulo, para distribuição gratuita de absorventes descartáveis em escolas públicas. Essa ação necessária traz à tona a questão da tributação no Brasil. O Pink Wash, termo em inglês referente à sobretaxação de produtos femininos, precede a iniciativa de Tax Free — originária nos Estados Unidos, propõe que as autoridades governamentais discutam os impostos, principalmente, os sobre os absorventes, pois se é um imposto aplicado somente à pessoas que menstruam, é uma forma de discriminação sexual. No Brasil, os absorventes têm uma tributação média de 25% (NERIS, 2020, p. 755).
Dentro do acrônimo WASH do inglês: água, saneamento e higiene, retornamos à questão do acesso à saneamento básico. Menstruantes sem acesso a banheiro seguram a urina por horas, o que pode causar infecções, e quando finalmente conseguem se deslocar, seja para ir ao banheiro, seja para buscar água, em casos de residências isoladas ou localizadas em áreas que apresentam ameaças à segurança de seus moradores, sofrem o risco de abuso sexual no caminho (UNFPA, UNICEF, 2021, p. 14).
A WaterAid define que o acesso à sanitários públicos para pessoas que menstruam devem respeitar aspectos de segurança (o banheiro deve possuir tranca e ser privado, além de localizado em local seguro com separação entre homens e mulheres), aspectos de higienização (água, sabão, papel higiênico, local para colocar os pertences pessoais para evitar contaminação e local para descarte dos resíduos menstruais), aspectos de acessibilidade (cabine privada acessível para todas as pessoas), aspectos de disponibilidade (cabines suficientes para evitar filas longas) e aspectos de manutenção (contar com limpeza e manutenção) (UNFPA/UNICEF, 2021, p. 14).
Para informar sobre essas necessidades abordadas, a educação menstrual é essencial, sendo sobretudo um componente da educação sexual. Isto é, a educação sexual e menstrual são fundamentais para que as pessoas que menstruam conheçam seus corpos e seus ciclos, evitando os estigmas relacionados à menstruação, a desinformação de que determinados tipos de absorventes são capazes de tirar a virgindade, além de advertir a gravidez precoce. Ademais, esse tipo de educação também ajuda a prevenir e denunciar casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes. Neste contexto, a campanha #HeforShe reforça a importância da educação menstrual para pessoas que menstruam ou não, já que a desinformação dificulta a empatia e o cuidado sobre o tema (UNFPA/UNICEF, 2021, p. 15).
Apesar dos esforços de difundir o assunto da pobreza menstrual por meio da educação sexual nas escolas por uma ala do governo brasileiro, a maioria ainda é relutante sobre o assunto. Uma vez que as questões de gênero e sexualidade ganharam notoriedade nos espaços, principalmente nas escolas, uma parte da sociedade, ainda dentro dos estigmas conservadores, luta contra a implementação de projetos de lei e programas de difusão da informação sobre educação sexual.
Os principais grupos conservadores foram o projeto Escola Sem Partido e grupos autônomos contrários à “ideologia de gênero”, responsáveis por barrar projetos de lei e programas sobre a temática, como também de vetar partes dos projetos de lei já em curso sobre a educação sexual. Dessa maneira, vemos a escola como principal espaço de disputa para implementação de iniciativas a favor de uma educação sexual mais inclusiva, que ensine sobre diversidade e pluralidade de corpos e o próprio funcionamento dos corpos humanos, sendo de extrema importância para o combate à pobreza menstrual.
Mesmo sendo um fenômeno baseado em índices de desigualdade social, racial e de renda, que não se limita às populações de países periféricos e subdesenvolvidos, a pobreza menstrual ainda é uma temática pouco discutida. Por um lado, existem aqueles que não entendem ou sequer reconhecem a existência do termo “pobreza menstrual” e todas as suas implicações; por outro, os diálogos que cercam a menstruação são tabus, resultantes de um longo histórico de preconceito e mitos que não enxergavam a menstruação como um indicador dos níveis de saúde pública, além da problemática envolvendo os eufemismos utilizados para não usar a palavra menstruação. Utiliza-se, por exemplo, “estar naqueles dias”, como se o uso da palavra menstruação remetesse a algo errado e sujo, o que provoca nas pessoas menstruantes sentimentos de vergonha sobre seus corpos. (UNFPA, UNICEF, 2021, p. 5-6).
REFERÊNCIAS
ASSAD, Beatriz Flügel. POLÍTICAS PÚBLICAS ACERCA DA POBREZA MENSTRUAL E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA O COMBATE À DESIGUALDADE DE GÊNERO. Revista Antinomias, ISSN 2675-9608, v. 2, n. 1, p. 140-160, jun. 2021. Disponível em: http://www.antinomias.periodikos.com.br/article/60e39095a9539505a0471774. Acesso em: 25 jul. 2021.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 13ª edição. Graal. 1999.
NERIS, Brenda Borba dos Santos. Políticas Fiscais e Desigualdade de Gênero: análise da tributação incidente nos absorventes femininos. In: Revista FIDES, Natal, v. 11, n.2, ago/dez 2020. Disponível em: http://revistafides.ufrn.br/index.php/br/article/view/533/541.
NEUMAM, Camila. Pobreza menstrual: Conheça o problema que leva brasileiras a deixarem de estudar. CNN Brasil, São Paulo, jun 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2021/06/19/pobreza-menstrual-conheca-o-problema-que-leva-brasileiras-a-deixarem-de-estudar. Acesso em: 25 jul. 2021.
PATERMAN, Carole. O contrato sexual. Editora Paz e Terra. 1993.
QUEIROZ, Ana Laura. Lei de combate à pobreza menstrual entra em vigor em cidade mineira. Correio Braziliense, jun. 2021. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/07/4938785-lei-de-combate-a-pobreza-menstrual-entra-em-vigor-em--cidade-mineira.html. Acesso em 25 jul. 2021.
SEVILLA, Gabriela; SEFFNER, Fernando. A guinada conservadora na educação: reflexões sobre o novo contexto político e suas reverberações para a abordagem de gênero e sexualidade na escola. Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017.
STRÖMQUIST, Liv. A origem do mundo: uma história cultural da vagina ou a vulva vs o patriarcado. Quadrinhos na cia. 2018.
UNFPA/UNICEF. Pobreza menstrual no Brasil: desigualdades e violação de direitos. 2021. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/media/14456/file/dignidade-menstrual_relatorio-unicef-unfpa_maio2021.pdf.
UNICEF. No Brasil, milhões de meninas carecem de infraestrutura e itens básicos para cuidados menstruais. 2021. Comunicado de imprensa. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/no-brasil-milhoes-de-meninas-carecem-de-infraestrutura-e-itens-basicos-para-cuidados-menstruais. Acesso em: 25 jul. 2021
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