Por Isabela Mendes, Naomi Napuri e Raquel Castro
Para entender a derrocada da guerra russo-ucraniana deste ano, é preciso recordar alguns fatores geográficos, identitários e econômicos. Geograficamente, os dutos russos passam pela Ucrânia para chegar à Europa, e o país também tem acesso ao Mar Morto. Ademais, é fundamental analisar que no leste ucraniano, existe uma minoria russa, que apoiada pelo Kremlin demanda secessão das repúblicas de Donetsk e Lugansk. Entre 2013 e 2014, com a ascensão de um governo pró-ocidente na Ucrânia, deu-se o episódio de anexação da Crimeia pela Rússia. Isso somado ao fato de que a Ucrânia tem interesse em fazer parte da União Europeia e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), manteve um clima de tensão visto que a Rússia sente sua influência militar na região ameaçada.
Nesse contexto, que em fevereiro de 2022, enquanto o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) buscava uma solução pacífica para a questão bilateral Rússia-Ucrânia, Putin anunciou uma operação militar no leste da Ucrânia, ação que ameaça a credibilidade das Nações Unidas (ONU), visto que a Rússia é membro permanente do CSNU, isto é, tem poder de veto. Após a ofensiva, a ONU convocou uma reunião emergencial no CSNU, porém a resolução foi vetada pela Rússia, o que fez com que o tema fosse direcionado para a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), que aprovou em 2 de março uma resolução que condenou a invasão russa, com 141 votos a favor, 5 contra e 35 abstenções.
Outro órgão das Nações Unidas, a Corte Internacional de Justiça (CIJ), publicou em 16 de março o resultado de sua investigação sobre possíveis crimes de guerra no conflito russo ucraniano, deslegitimando o pretexto da Rússia - de que a Ucrânia tinha planejado e cometido ataques contra russos - para a invasão, portanto a ofensiva deveria parar. Em 24 de março, a AGNU aprovou uma nova resolução condenando a Rússia pela crise humanitária decorrente do conflito, e duas semanas depois, numa ação coordenada pelos Estados Unidos, a Rússia foi expulsa do CSNU, segunda vez em que isso acontece na história (a primeira foi em 2011 no conflito da Líbia).
Esses acontecimentos expõem a limitação da ONU para lidar com conflitos que envolvem grandes potências do Sistema Internacional. A ONU foi desenhada em torno do princípio da segurança coletiva, por isso as potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial receberam poder de veto no CSNU, cuja limitação é histórica devido à anarquia do Sistema Internacional, que reforça a assimetria de poder dentro do órgão. Porém apesar de todas críticas possíveis o poder de constrangimento da ONU deve ser considerado, ademais de seus mecanismos para a manutenção da paz.
Entre as operações de manutenção da paz, estão o peacemaking, o peace enforcement e o peacebuilding. Peacemaking constitui-se de medidas tomadas em relação a conflitos que ainda estão ocorrendo e envolvem ações diplomáticas a fim de ambas as partes envolvidas no conflito chegarem a um consenso. Já as missões classificadas peace enforcement visam restaurar a paz e a segurança em uma zona de conflito, utilizando-se da força militar. Neste tipo de missão, destaca-se a necessidade da autorização dos membros do CSNU para que ela ocorra. Por fim, o peacebuilding tenta evitar um possível conflito através do fortalecimento das capacidades nacionais visando uma boa gestão de conflito e também servindo como base para o desenvolvimento da paz.
Além das missões de paz, a ONU também encoraja medidas para a prevenção de conflitos na tentativa de evitar que um conflito se torne violento. Embora encorajada, tais medidas não recebem tanta atenção e nem orçamento por parte da organização e do CSNU. Abdenur e Carvalho (2017, tradução nossa) argumentam que o Conselho de Segurança exerce um papel essencial para evitar o surgimento de novos conflitos, além disso, a ONU prioriza o uso de missões do tipo peacekeeping, quando poderia ter prevenido o conflito.
Embora o método de prevenção de conflito aparente ser ideal, ele é o mais difícil de ser implementado, além de estar ligado diretamente à estrutura política dos países envolvidos, a intervenção da organização a fim de chegar na resolução do conflito pode ser evitada através do veto dos membros do CSNU. Através do veto, os membros do Conselho podem defender seus interesses econômicos e políticos em relação aos países envolvidos no conflito. No atual conflito Rússia-Ucrânia, a utilização do seu poder de veto a fim de defender seus interesses geopolíticos foi exercida pela Rússia, impossibilitando a atuação da ONU na prevenção e mediação do conflito. Tal fato levou a atenção do mundo a incapacidade da organização na prevenção e resolução de conflitos, destacando também as falhas do CSNU. Consequentemente, questiona-se a eficiência da ONU já que o conflito armado em questão foi iniciado por um membro de seu próprio conselho, deixando claro então os limites das Nações Unidas.
Sobre a população civil vítima do conflito, é análise unânime o fato de que mulheres e crianças estão mais vulneráveis em zonas de conflito, porém, conforme reforça Cynthia Enloe, teórica feminista das Relações Internacionais, o papel desempenhado por mulheres nos conflitos contemporâneos devem ser analisados fora da ótica dualista que coloca o papel do homem na frente de batalha e das mulheres no cuidado.
Esse ano, em entrevista ao Stance Podcast, Enloe disse que em toda guerra há a tendência de análise simplista nos papéis de combatente, vítima e vilão, e que isso impede uma análise ampla do papel dessas mulheres, que muitas vezes ocupam mais de um papel ao mesmo tempo quando, por exemplo, são abusadas pelos próprios colegas de exército. Na Ucrânia, mulheres idosas com dificuldade de evacuar decidiram ficar no país e as que decidiram evacuar tiveram que lidar com o perigo do tráfico internacional de pessoas, ademais da questão racial e das demais críticas à recepção voluntária de ucranianos enquanto a outras nacionalidades é negado esse direito.
Vale observar que em um contexto de hospitais bombardeados, centenas de mortos e pessoas feridas, em condições precárias a gestão da pandemia do coronavírus é dificultada. A Ucrânia é um dos países do Leste Europeu que pior lidou com o combate à Covid. Antes da guerra, o país já vivenciava sua quinta onda de contaminados, mesmo que os casos estivessem caindo, há um risco iminente por conta da deslocação dessas pessoas para outros territórios. Observa-se também que a população hesitou em se vacinar, fora o acesso escasso de imunizantes e disputas geopolíticas em torno das vacinas. O governo ucraniano decretou a proibição de registros de vacina que foram produzidas em território russo. Várias autoridades do país, abrangendo o presidente, diziam que as vacinas eram armas híbridas da Rússia contra a população da Ucrânia, com o intuito de prejudicar e desmoralizar o governo atual. A Rússia chegou a acusar o governo ucraniano, através de canais de TV, dizendo que Volodymyr Zelensky, atual presidente da Ucrânia preferia deixar os ucranianos morrerem do que usar as vacinas russas. Ou seja, além do fluxo de refugiados diante do conflito, somou-se o agravante do coronavírus, questão que as Nações Unidas também está tendo que lidar através do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).
Referências:
CARVALHO, Gustavo; ABDENUR, Adriana E. Can the UN Security Council help prevent conflicts?. Institute for Security Studies, 2017.
Conflict in Ukraine. Global Conflict Tracker. Maio 2022. Disponível em: https://www.cfr.org/global-conflict-tracker/conflict/conflict-ukraine
Com a guerra e Covid, Ucrânia assiste a duas crises sanitárias sobrepostas. Maio 2022 Disponível em: //www1.folha.uol.com.br/amp/mundo/2022/03/com-guerra-e-covid-ucrania-assiste-a-duas-crises-sanitarias-sobrepostas.shtml
DIGOLIN, K.A. A atuação da ONU no conflito entre Rússia e Ucrânia. Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional. Maio 2022. Disponível em: https://gedes-unesp.org/a-atuacao-da-onu-no-conflito-entre-russia-e-ucrania/
Fluxo de refugiados ucranianos começa a testar limites de capacidade da Europa Central. Maio 2022 Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/fluxo-de-refugiados-ucranianos/
KUBICEK, Paul. The History of Ukraine. Westport: Greenwood Publishing Group, 2008.
ENLOE, Cynthia. Bananas, beaches and bases. In: Bananas, Beaches and Bases. University of California Press, 2014.
TERMINOLOGY. United Nations Peacekeeping. [S.d]. Disponível em: https://peacekeeping.un.org/en/terminology#:~:text=Peacebuilding%20aims%20to%20reduce%20the,necessary%20conditions%20for%20sustainable%20peace. Acesso em: 24 mai. 2022
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Security Council Deadlocks and Uniting for Peace: An Abridged History. 2022. Disponível em: https://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF96FF9%7D/Security_Council_Deadlocks_and_Uniting_for_Peace.pdf
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Corte Internacional de Justiça decide que Rússia deve suspender imediatamente operações na Ucrânia. 2022. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2022/03/1783052
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