Por: Hanna Cruz de Azevedo Maia
Lia Laranjeira Cardoso
A decisão do país que sediará a Copa do Mundo de 2022 tem atraído diversas críticas desde seu anúncio. Embora a realização do evento em países considerados autoritários não seja exatamente novidade, a escolha do Qatar como país anfitrião foi controversa; autoridades da FIFA foram acusadas de corrupção e permitiram que o Catar 'comprasse' a Copa do Mundo (PLACAR, 2021), cujo tratamento aos trabalhadores da construção de estádios foi questionado por grupos de direitos humanos sobre a mão de obra e os altos custos necessários para fazê-lo.
Outros fatores de caráter menos subjetivo também foram levantados como contrapontos à decisão. As condições climáticas tornaram "impossível" para alguns realizar um torneio nacional, apesar dos planos de incluir estádios com ar condicionado e até mesmo mudar a data do torneio para uma época mais fria do ano. Sepp Blatter, presidente da FIFA quando o Catar foi selecionado, observou mais tarde que a escolha do Catar para sediar a Copa do Mundo foi um "erro" devido ao calor sufocante contra as condições dos trabalhadores nos canteiros de obras no Catar, similar com o ocorrido no Brasil com a Copa do Mundo em 2014, quando os noruegueses cogitaram boicotar a competição.
Violações de direitos humanos, principalmente no que diz respeito aos trabalhadores da federação, não são novidade para a FIFA, que vem enfrentando acusações do tipo desde 2010. Em 2016, a FIFA adotou os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Negócios e Direitos Humanos e incorporou a responsabilidade de respeitar os direitos humanos em seus regulamentos. Também estabeleceu um Conselho Consultivo de Direitos Humanos independente, engajou especialistas em direitos humanos e criou um mecanismo de denúncia para defensores de direitos humanos. Em 2017, a FIFA adotou uma política de direitos humanos que especifica que os compromissos com os direitos humanos são obrigatórios para todas as agências e funcionários da FIFA.
Esses compromissos, porém, pouco efeito têm sobre as realidades estruturais dos países que sediam seus eventos, deixando a própria organização claro que suas responsabilidades quanto à defesa de direitos humanos são independentes àquelas atribuídas aos governos locais, conforme os princípios de Direitos Humanos em corporações propostos pela ONU (ROURKE; THEODORAKI, 2022). O governo do país anfitrião pouco tem feito para se afastar de sua imagem negativa perante a comunidade internacional: graves denúncias de violação de direitos
trabalhistas foram feitas pelo jornal britânico The Guardian (2021), que afirma que cerca de 6500 trabalhadores imigrantes (que eram, majoritariamente, homens pobres do sudeste asiático) morreram em serviço no país desde que ele ganhou o direito de sediar a Copa, há 10 anos. As denúncias da imprensa e de ONGs, como a Anistia Internacional, pressionaram o governo a reformar suas leis trabalhistas e aumentar os salários, atitude apontada como insuficiente frente às graves acusações (O VALE, 2021). Além disso, o país também se recusa a realizar autópsias nos corpos dos trabalhadores mortos durante as construções preparativas para o evento, dentre outras denúncias na falta de transparência das autoridades em relação às denúncias (THE GUARDIAN, 2021).
Dos casos de violação grave de direitos humanos presentes na conturbada preparação do país para a Copa, um chama a atenção. Paola Schietekat, uma mexicana de 28 anos que estava trabalhando no Comitê Organizador da Copa, relatou um caso de agressão por parte de um colega e foi transformada em réu em uma situação na qual era vítima. Ela, que trabalhava há mais de um ano no Qatar, sempre foi apaixonada por futebol e estava realizando um grande sonho ao ingressar na principal instituição do esporte em seu evento mais esperado. Porém, no dia 6 de junho de 2021, o sonho tornou-se um pesadelo: seu apartamento em Doha foi invadido por um conhecido Colombiano que a agrediu e a ameaçou. Infelizmente, não foi a primeira vez que a mexicana havia sofrido violência de gênero em sua vida: aos 16 anos, havia sido estuprada. Dessa forma, o caso virou-se contra a vítima. Paola virou ré no processo de violação das leis do matrimônio, podendo ser condenada pela constatação de não ser mais “virgem” (EL PAIS, 2022).
O agressor, que ela mal conhecia, disse às autoridades que eles tinham um relacionamento. Sem intérpretes e advogados, Paola negou o que foi dito. As leis do Qatar são rígidas tanto para homens quanto a mulheres que tem relações sexuais fora de um casamento, portanto, mesmo ela negando tudo diante de seu agressor, ela foi investigada. A mexicana foi interrogada por horas, pois não o foco não era a agressão , e sim a relação fora do casamento. Paola tentou apresentar documentos que provavam que ela já havia se casado no passado, o que não impediu que a jovem fosse condenada a 7 anos de prisão e a levar 100 chibatadas. Paola conseguiu deixar o Qatar e voltar para seu país, mesmo condenada.
A mexicana criticou fortemente a falta de apoio consular; ela estava em um país no qual não falava a língua local com fluência, vivendo uma dupla situação de violência: primeiramente, de seu agressor, que saiu impune, e em seguida do Estado onde vivia, que se baseou em um ultrapassado conceito patriarcal, a virgindade, para condenar-lhe. Paola afirma que a embaixada não lhe prestou assistência durante os momentos mais críticos do processo, questionando inclusive como as unidades diplomáticas mexicanas pretendem lidar com os possíveis casos semelhantes que possam ocorrer em um evento no qual irão visitar o país milhares de turistas que, em sua maioria, não têm conhecimento das leis locais (EL PAIS, 2021). Após a repercussão internacional, autoridades diplomáticas do México intervieram e, em abril deste ano, o processo penal contra Paola foi devolvido pelo juiz qatari ao órgão equivalente à Procuradoria, o que representou o fim de sua condenação (FOLHA DE SÃO PAULO, 2022).
A situação reflete o medo comum a mulheres de todas as partes do mundo: o medo da violência sexual e da descredibilização ao tentar recorrer à justiça. A maioria das vítimas tinham medo de protestar por vergonha e humilhação. O patriarcado valoriza muito a virgindade da mulher, pois representa a feminilidade, o potencial conjugal, a pureza moral e a garantia de posse. Diz-se, na interpretação da fé islâmica do governo catariano, que as mulheres permanecem castas até o casamento se quiserem que seus maridos as respeitem e as tratem bem. Assim legitimando a decência, e a princípio ela primeiro o satisfaça sexualmente e cumpra as obrigações domésticas. E o homem é, portanto, obrigado a fornecer-lhe tudo e qualquer coisa necessária para uma vida digna.
A organização da FIFA recebe certas críticas quanto à sua atuação diante de violações de direitos humanos em seus eventos. A maneira como seu comitê de de averiguação e proteção de seus trabalhadores funciona, em cooperação com outros atores, como os governos locais, protetores de direitos humanos, etc; muitas vezes pode acabar resultando na federação se isentando de sua responsabilidade para com seus trabalhadores (ROURKE; THEODORAKI, 2022). A condução do caso de Paola não demonstra apenas o despreparo das autoridades mexicanas em proteger seus nacionais em território estrangeiro, mas também a insuficiência da organização esportiva mais relevante do mundo em atuar em prol de suas trabalhadoras.
Os casos de trabalho análogo à escravidão e o absurdo que ocorreu com Paola são, talvez, reflexo de uma urgente necessidade de reforma nos padrões de proteção de diretos humanos por parte de organizações privadas definidas pela ONU, o qual guia o trabalho da FIFA e de muitas outras instituições. Protestos generalizados e evidências de corrupção durante a licitação do Catar para a Copa do Mundo reafirmam, também, a necessidade de uma abordagem investigativa mais sutil para investigar casos de violência de gênero, além de promover medidas que impeçam a ocorrência de novas violências do tipo, como treinamentos de sensibilidade de gênero e respeito no ambiente de trabalho. É necessário que a organização passe a atuar realmente em pró àquilo que ela defende publicamente, agindo com transparência e assumindo suas responsabilidades.
Referências Bibliográficas
AGÊNCIA O GLOBO. Copa do Mundo no Qatar vive crise em meio a uma denúncia sobre violações e ameaças de boicote. 30 de mar. de 2021. O Vale. Disponível em: <https://www.ovale.com.br/esportes/copa-do-mundo-no-qatar-vive-crise-em-meio-a denuncias-sobre-violac-es-de-direitos-e-ameacas-de-boicote-1.9090>. Acesso em: 09 de jul. de 2022.
A Reviravolta no caso da mexicana condenada a 100 chibatadas após denunciar agressão no Qatar. 5 de abr. de 2022. Folha de São Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/04/a-reviravolta-no-caso-da-mexicana condenada-a-100-chibatadas-apos-denunciar-agressao-no-qatar.shtml>. Acesso em: 09 de jul. de 2022.
CATAR pagou R$3,8 bi a FIFA para ser a sede da Copa de 2022. 28 de set. de 2019. Placar Abril. Disponível em: <https://placar.abril.com.br/placar/catar-pagou-r-38-bi-a-fifa-para-ser a-sede-da-copa-de-2022/>. Acesso em: 07 de jul. de 2022.
DÍAZ, José Pablo. Una mexicana que denuncio abuso sexual en qatar condenada a 100 latigazos y siete años de prision. 18 de fev. de 2022. El Pais. Disponível em:<https://elpais.com/mexico/2022-02-18/una-mexicana-que-denuncio-abuso-sexual-en qatar-condenada-a-100-latigazos-y-siete-anos-de-prision.html>. Acesso em: 09 de jul. de 2022.
O’ROURKE, A; THEODORAKI, E. The FIFA World Cup Qatar 2022 Sustainability Strategy: Human Rights Governance in the Tripartite Network. Front Sports Act Living. 2022. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9168318/>. Acesso em: 05 de jul. de 2022.
REVEALED: 6,500 migrant workers have died in Qatar since World Cup awarded. 23 de fev. de 2021. The Guardian. Disponível em: <https://www.theguardian.com/global development/2021/feb/23/revealed-migrant-worker-deaths-qatar-fifa-world-cup-2022>. Acesso em: 9 de jul. de 2022.
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