Apátrida é o termo utilizado para definir indivíduos ou coletivos que legalmente não possuem uma pátria, e consequentemente não detém nacionalidade. Essa condição implica que muitos direitos básicos providos pelo Estado não alcançam esses indivíduos pela inexistência de uma relação social entre os dois, e devido a isso, a apatridia é considerada uma prática desumana, pois priva seres humanos do acesso à educação, saúde e bem-estar. Dentre muitos povos considerados apátridas, os curdos são a maior população do mundo que enfrentam essa condição, e atualmente estão espalhados por uma região que abrange quatro países do oriente médio: Turquia, Irã, Iraque e Síria. Essa região histórica é chamada de Curdistão, que ao longo dos séculos foi palco de conflitos e invasões devido a sua posição geográfica favorável, caracterizando os curdos como um povo de extrema resistência e luta. A negação de uma cultura curda perpassa todos esses países, que não relacionam os curdos como uma identidade fora dos padrões árabes de cada um desses lugares.
Um passo importante na luta curda por identidade aconteceu em 1925, quando o movimento nacionalista por um Curdistão independente iniciou junto da declaração da Turquia como estado soberano. Esse movimento gerou uma forte represália do Governo Turco, que na época assassinou milhares de mulheres curdas e cometeu diversos crimes de guerra, hoje conhecidos como gênerocídio.
Mesmo que silenciado por alguns anos, movimentos estudantis na Turquia abraçaram a causa nos anos 70, e o debate sobre a identidade curda ressurgiu no âmbito popular e acadêmico. Essa nova onda de discussão influenciou a criação de uma organização política chamada PKK (Parti Karkerani Kurdistan), o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, em 1978. O objetivo da organização é desenvolver a autodeterminação do povo curdo, possibilitar seu acesso à saúde e ampliar o debate sobre sua cultura na sociedade árabe sem limitações jurídicas e leis proibitivas. Nos embates travados ao longo dos anos, é imprescindível abordar o papel crucial das mulheres curdas, que tomaram a frente de vários conflitos, e assumem cargos de liderança dentro da organização até os dias de hoje.
Uma das premissas do PKK detalha que as mulheres devem ser sempre tratadas como iguais, e que não há de existir discriminação de gênero. Mulheres curdas defendem a criação de uma teoria feminista com possibilidade de abranger as experiências de mulheres árabes, vítimas de conflitos armados e ex-combatentes. De forma a representar da melhor forma o povo curdo, além do PKK criaram-se organizações de cunho político e militar distintos na região do Curdistão, como PYD (Partido da União Democrática), YPG (Unidade de Proteção Popular) e o YPJ (Unidade de Defesa das Mulheres). O YPJ se estabeleceu como uma frente política e militar formada exclusivamente de mulheres, e conta com cerca de 7.000 guerrilheiras. Sua atuação mais recente e noticiada em Rojava contra o Estado Islâmico fez ressurgir o debate acerca do feminismo no oriente médio dentro das Relações Internacionais.
De acordo com essas mulheres, que formam 45% da força armada curda, o objetivo das guerrilhas femininas e de sua inserção militar é mudar a mentalidade patriarcal do exército. Para além do espectro militar, mulheres curdas pretendem utilizar de seu protagonismo nos conflitos para gerar mudança na sociedade árabe e desconstruir o papel secular de mulher do lar, enfatizando que sua luta não é apenas pelas mulheres curdas, mas por todas as mulheres árabes. É relevante ressaltar que a luta se estende para além da atuação durante o conflito, mas também busca participação feminina plena em processos de paz e negociações de cessar fogo, debate levantado também por ex-combatentes mulheres das FARC durante os acordos de paz em Havana em 2016.
Em 2014 o Estado Islâmico lançou um ataque à Kobani, cidade curda estabelecida no norte da Síria, e declarou naquele momento sua principal motivação: o extermínio da comunidade curda. O Estado Islâmico do Iraque e do Levante, também conhecido pela sigla ISIS, encontrou forte resistência das YPG (Unidades de Proteção do Povo) durante os ataques. As guerrilheiras da YPJ, frente à ofensiva genocida e de forma a combater a violência sexual de mulheres e crianças como arma de guerra, participaram ativamente da defesa da região e conseguiram com sucesso manter a região livre da influência jihadista da ISIS por meio de uma guerra denominada "a Stalingrado do conflito sírio".
Kobani é apenas um dos três cantões autogovernados da região autónoma do norte-nordeste da Síria, conhecida como Rojava ou Curdistão Sírio. Apesar de não ser reconhecida como autônoma pelo governo sírio, Rojava implementa o autogoverno por meio de um sistema federalista baseado no princípio do confederalismo democrático. Rojava é um experimento político-social baseado na Jinealogia, desenvolvida pelo líder do movimento curdo do PKK, regindo as ações governamentais da região em todos os seus setores.
A Jinealogia surge como uma nova teoria feminista desencadeada pelas inúmeras formas de opressão sofridas pelas mulheres curdas e árabes ao longo da história. Sua base anticolonial, anticapitalista e ecossocialista é uma nova forma de conhecimento teórico e prático que coloca as experiências das mulheres árabes como central na formação de uma ideologia não academicista. Como descrito do livro da Jinealogia: "A Jinealogia será uma forma de conhecimento produzido pelas academias alternativas, em que o conhecimento produzido será direcionado à sociedade como um todo, cujo objetivo, também seja que esse conhecimento incida na vida das pessoas. Assim, estamos falando de novas formas de academias, as quais empregarão linguagem simples e ferramentas de comunicação acessíveis a toda mulher". Na prática, o movimento curdo estabeleceu uma cota de mulheres de 40% em organizações de todos os setores da sociedade civil e introduziu um sistema de co-liderança que estabelece como obrigatória a atuação de uma mulher e um homem à frente de qualquer órgão administrativo governamental.
É fundamental que os estudos de gênero nas Relações Internacionais se desenvolvam de forma a pluralizar a academia e descolonizar as bases ocidentais de pesquisa e formação teórica. O movimento feminista pela igualdade de gênero na sociedade curda abre novos precedentes na construção de uma teoria feminista árabe, e coloca mulheres como protagonistas no âmbito militar, político e social em meio a conflitos armados, além de ampliar o papel de mulheres árabes como líderes de um movimento revolucionário pela democracia na Síria na luta por um Curdistão livre.
Referências Bibliográficas
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EXÉRCITO CURDO CONTA COM 45% DE MULHERES NA FRENTE DE BATALHA: As forças militares curdas na Síria, empenhadas no combate ao Daesh, são 45% femininas, e o número de mulheres tende a aumentar, declarou a comandante das Unidades Femininas de Proteção (YPJ), Nesrin Abdalla, neste domingo. Correio do Brasil, 07 fev. 2016.
ISIK, Ruken. A LUTA CURDA POR DEMOCRACIA E IGUALDADE DE GÊNERO NA SÍRIA: mulheres na linha de frente da libertação e do governo curdo. Mulheres na linha de frente da libertação e do governo Curdo. 2019. Traduzida para o português por Daniel Stefani. Disponível em: https://revistaperiferias.org/materia/a-luta-curda-por-democracia-e-igualdade-de-genero-na-sira/.
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LIMA, Renan. Curdos: o maior povo apátrida do mundo. o maior povo apátrida do mundo. Publicada no portal Politize!. Disponível em: https://www.politize.com.br/curdos/.
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