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Gênero na literatura brasileira: O reforço da necessidade do feminismo interseccional

Por: Giovana Cecilio

Isabela Mendes

Kethlyn Winter


A Academia Brasileira de Letras se iniciou no período Imperial Brasileiro inspirada na Academia Francesa. Em sua inauguração, em 1897, tinham 30 homens membros e uma primeira mulher excluída - Júlia Lopes de Almeida - intelectual importante da época que hospedou em sua casa discussões sobre a ainda não inaugurada Academia. A afirmativa utilizada para sua exclusão foi de que, conforme a Academia Francesa, a Academia Brasileira de Letras aceitaria apenas homens e, então, elegeram seu marido. Após esse episódio, a primeira mulher a receber o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras foi Dinah Silveira de Queiroz e, apenas em 1954. Dinah, 16 anos após receber o prêmio, se candidatou à Academia e foi rejeitada, o que reacendeu a discussão da exclusão feminina pela Academia (ROMANELLI, 2014).

Ao tratar da participação feminina da Academia, temos como primeira mulher eleita Rachel de Queiroz, em 1977. Contudo, em seu discurso de posse não mencionou a importância histórica de ser a primeira mulher a ocupar uma cadeira na casa. Neste contexto é importante notar as relações familiares de Rachel: prima de Castelo Branco, primeiro Presidente da Ditadura Militar. A partir disso, é percebido que a Academia Brasileira de Letras não aceitou qualquer mulher, sendo seu status familiar relevante no momento de sua aceitação para uma cadeira na Academia (ROMANELLI, 2014).

Um outro aspecto que chama a atenção nesse sentido, é a ausência de Clarice Lispector na Academia, pelo fato de a escritora nunca ter feito campanha para se candidatar à uma cadeira. A questão que esse capítulo da Literatura Brasileira nos traz é que as mulheres sempre foram excluídas dos cânones literários. Segundo Virginia Woolf, o problema começa com a exclusão da mulher do mundo das artes. Exemplo disso é a Judith, irmã de Shakespeare, que igualmente talentosa foi forçada a se casar e não teve seus estudos bancados para seguir uma carreira. Sua história acaba com ela se suicidando grávida. Essa passagem nos dá brecha para recordarmos que muitas mulheres ao longo da história publicaram seus escritos com pseudônimos masculinos e, que ainda são utilizados na atualidade, como é o caso de J.K. Rowling. Na literatura de língua portuguesa, Teresa Margarida da Silva e Orta, nascida em São Paulo, é considerada a primeira romancista com a publicação de Aventura de Diófanes, em 1752. (ROMANELLI, 2014, p. 15-16).

Mas o fato de os escritores homens serem reconhecidos sem necessidade de luta reafirma o que Foucault chama de direito privilegiado e exclusivo do sujeito que fala. A pesquisadora Lia Scholze (2002) em um artigo sobre gênero e representação na literatura retoma essa questão foucaultiana para observar que o sujeito que fala é sempre masculino, não apenas na literatura, mas também na lei e na tribuna. Ela critica que para os homens são reservados os lugares de destaque e por isso são sempre mais visíveis. Quando Scholze (2002) discorre sobre espaços de destaque é importante a consciência de que os homens ocupam mais espaços públicos, pois para as mulheres a sociedade impôs o espaço privado, do filho, da família e das tarefas da casa.

Neste mesmo artigo Scholze (2002) discorre sobre quatro livros com personagens brancas do sul do Brasil - Antes que o Amor Acabe de Patrícia Bins; O ponto cego de Lya Luft; O 35º ano de Inês de Tânia Faillace e A colheita dos dias de Valesca de Assis - que escrevem sobre suas frustrações de serem restritas ao ambiente privado. A intersecção comum entre as personagens das quatro obras é a maternidade. As personagens em algum momento da trama se questionam sobre a realização feminina se dar no maternar. Sobre a sexualidade, a autora usa ainda Focault afirmando que “ a sexualidade, junto com a política, são os buracos negros onde a interdição se faz mais forte” (SCHOLZE, 2002, p.31). Às mulheres são interditadas suas falas, querem nos silenciar para não serem ouvidas; são interditadas as escritas, a maioria das produções literárias científicas são masculinas e com essa separação onde o privilégio é sempre do homem, as mulheres não recebem os créditos merecidos. E, finalmente, Scholze (2002) conclui que a mulher é uma identidade construída discursivamente, onde os discursos históricos construídos ao nosso redor se repetem.

Quando, contudo, busca-se enxergar a realidade da mulher brasileira, nem sempre essa realidade esteve bem representada na literatura. Carolina Maria de Jesus nos ajuda a refletir sobre isso, pois diferente da realidade das personagens das obras analisadas por Scholze, mulheres brancas e do sul do Brasil - região historicamente racista muito devido aos nazistas que viveram na região após a Segunda Guerra Mundial - Carolina viveu na favela, lutando diariamente por sua sobrevivência básica. Uma de suas obras mais famosas, "Quarto de Despejo” mostra a realidade da mulher, negra e pobre, que está num lugar de subjugação maior que o das mulheres brancas, trazendo a importância do feminismo interseccional, que compreende questões de raça e classe para além da de gênero.

Esmeralda Ribeiro (2002), em Cadernos Negros, analisa que o título da obra de Carolina “Quarto de Despejo” remete ao lugar do negro pois a palavra quarto se refere ao nosso íntimo, mas junto com despejo siginifica o pior lugar social que sobrou para os negros. Paulina Ildefonso e Shirlena Amaral na análise do discurso de Carolina neste mesmo livro, alertam que não basta analisar uma mulher como pobre ou como negra, mas que é preciso enxergar o mundo como ele é, ou seja, com as divisões de classe, onde uma grande maioria é explorada, e as mulheres negras se encontram na base dessa exploração (RIBEIRO, 2002).

Deste modo, através da obra de Carolina podemos conhecer narrativas pouco representadas e valorizadas na literatura brasileira, percebendo que mesmo após seis décadas da publicação de “Quarto de Despejo”, o cotidiano dessa narradora-personagem continua atual em milhares de outras Carolinas. É notável que a literatura brasileira é um reflexo imediato de nossa sociedade e que, da mesma forma que mulheres brancas estão alcançando expressividade político-social e econômica, também a estão alcançando na cena literária. O mesmo não se dá quando falamos das mulheres negras. Em Feminismo para os 99%: um manifesto, as autoras constroem seus argumentos partindo da constatação de que o feminismo liberal - vertente mais amplamente difundida - é um dos meios de manutenção da subjugação da maioria das mulheres (ARRUZZA, BHATTACHARYA, FRASER, 2019).

Com base no manifesto trazemos a discussão especificamente para o âmbito literário, compreendendo como e porquê as vozes de mulheres racializadas, bem como de tantas outras também marginalizadas, continuam sendo subestimadas no circuito literário, quase sempre permanecendo confinadas a um pequeno nicho pouco explorado por leitores. Apenas seletas mulheres conseguem ultrapassar as barreiras impostas e galgar até o topo da hierarquia deste mercado, tornando-se exemplos de talento, empoderamento e diversidade, dando a falsa sensação de que a classe de mulheres como um todo está finalmente sendo representada. Logo, tratar como avanço para o feminismo a ascensão individual de mulheres acaba por perpetuar a estrutura que oprime a maioria de nós.

A literatura é uma das manifestações dessa opressão. Ela foi e continua sendo um meio privilegiado de produção e reprodução simbólicas, como aponta a escritora brasileira Conceição Evaristo em publicação de 2005 para a revista Palmares. Conceição explícita como a literatura ao partir majoritariamente do olhar masculino e branco teve papel importante em perpetuar estereótipos sobre as mulheres negras, coisificando-as como não-mães, não dignas de afeto, puramente objetos de desejo sexual (EVARISTO, 2005). O aumento da presença de mulheres brancas na literatura brasileira pode significar ao feminismo liberal uma conquista, mas para que de fato seja, falta a intersecção que expanda essa conquista às demais mulheres.

Apesar dos obstáculos, a literatura brasileira vem tornando-se cada vez mais uma ferramenta libertadora que nos conecta à outras vivências, possibilitando expressividades que fogem das convencionalidades mais propagadas. Assim, a mera representatividade abre espaço, mesmo que a passos lentos, para a auto-representação. E ao tratar de gênero na literatura brasileira, fazê-lo sem abordar as interseccionalidades não abarca a luta feminista daquelas que, devido a séculos de violência estrutural, foram compelidas para fora dos espaços de poder e de produção de discurso. Falar de literatura por um viés interseccional é questionar a falta de acesso à educação e recursos econômicos, é questionar as nuances da violência patriarcal, racista e LGBTQfóbica que torna o funil de aprovação do mercado editorial mais e mais estreito, que retira a oportunidade de muitas pessoas de terem contato com a literatura.

Escritoras negras como Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis e Geni Guimarães são exemplos grandiosos que, mesmo com as adversidades, pavimentaram a estrada para discursos literários que passam a ter a mulher negra como sujeito, como aquela que descreve e não mais como objeto que é descrito. Essas vozes na contramão do que nos foi imposto apresentam uma inovação para a literatura brasileira, inspirando outras mulheres que lêem perceberem seus reflexos nas histórias narradas (EVARISTO, 2005).


REFERÊNCIAS:


AMARAL, Shirlena; MORAIS, Gizelya; ILDEFONSO, Pauline. Classe, gênero e raça: análise do discurso de Carolina Maria de Jesus em “Quarto de Despejo”. UENF. Disponível em: http://www.filologia.org.br/rph/ANO26/78supl/83.pdf. Acesso em: 15 de maio de 2021.

ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHYARA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: Um manifesto. 1. ed. [S. l.]: Boitempo, 2019. p. 128.

EVARISTO, Conceição. Da representação à auto-apresentação da Mulher Negra na Literatura Brasileira. Revista Palmares, 2005. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/sites/000/2/download/52%20a%2057.pdf. Acesso em: 27 mai. 2021.

RIBEIRO, Esmeralda. A narrativa feminina publicada nos cadernos negros, sai do quarto de dispejo.In:http://www.letras.ufmg.br/site/e-livros/G%C3%AAnero%20e%20representa%C3%A7%C3%A3o%20na%20Literatura%20Brasileira.pdf (org). Gênero e representação na literatura brasileira. Minas Gerais. p.174-182.

ROMANELLI, Mariana. A Representatividade Feminina na Literatura Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: MONOGRAFIA. 2014. Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/639/3/MRomanelli.pdf. Acesso em: 27 mai. 2021.



SCHOLZE, Lia. A mulher na literatura: Gênero e representação. In: http://www.letras.ufmg.br/site/e-livros/G%C3%AAnero%20e%20representa%C3%A7%C3%A3o%20na%20Literatura%20Brasileira.pdf (org). Gênero e representação na literatura brasileira. Minas Gerais. P.229-233.



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