por Daniele Thomaselli, Juddy Garcez e Mahryan Sampaio
Como já expusemos anteriormente, os estudos de gênero em Relações Internacionais (RI), ainda que recentes, já adentraram as mais diversas esferas da produção do conhecimento dentro desta disciplina. É possível afirmar que feminismo e segurança, um par por vezes não tradicional, já é um campo consolidado dos estudos de gênero em RI. Ainda assim, ele não é - ou ao menos não deveria ser - o único que importa. Quando Tickner (2001) nos informa que os encontros entre os feminismo e as RI foram, no mínimo, tumultuados, ela se refere principalmente ao fato de que, para as feministas, as famigeradas “barreiras” interdisciplinares e mesmo as fronteiras entre o público e o privado não passam de construções muito bem definidas histórica e geograficamente.
Ainda para a autora, o feminismo internacional é profundamente inter e multidisciplinar. Ele advém das e escoa para disciplinas como Sociologia, Psicologia, História, Antropologia e Ciência Política. “Feministas investigam como a intersecção entre raça, classe e gênero e outras estruturas hierárquicas sociais no nível global afetam a, e são afetadas pela, vida social dentro e entre indivíduos e Estados.” (TICKNER, 2001, p.132)¹ Esse tipo de pesquisa é de extrema relevância porque ele não auxilia a compreender não apenas as múltiplas opressões que diferentes mulheres sofrem, mas também como se dá a estrutura de poder social, política, econômica e cultural.
É pensando exatamente na noção de interseccionalidade e como os estudos de gênero em RI trabalham com este conceito que trazemos esse breve texto. Partindo agora para uma explicação mais teórica, no que diz respeito ao termo “interseccionalidade”, ele foi criado em 1989 pela estadunidense Kimberlé Crenshaw. O intuito da ativista, ao cunhar o conceito, foi o de denunciar a sub representação de determinadas pessoas mesmo em grupos de militância de minorias sociais, como é o caso das mulheres que, por vezes, são excluídas tanto dos movimentos feministas quanto da luta antirracista. Essa dupla opressão, que surge exatamente da intersecção entre duas formas de exclusão, não pode ser compreendida de forma separada uma vez que a situação de violência contra a mulher é agravada por ela ser negra, bem como o abuso contra a pessoa negra é agravada por ela ser mulher.
Nesse sentido, o feminismo interseccional é essencial para que possamos questionar o lugar que as mulheres negras ocupam no sistema internacional – uma vez que as Relações Internacionais enquanto campo de estudo abarcam uma noção de Estado e poder hegemônico centralizado na figura do homem branco ocidental –, bem como a própria universalização das categorias de gênero e do “ser mulher” dentro do mainstream. A esse respeito, Spivak (2010) propõe uma reflexão em torno da representação dos sujeitos do Terceiro Mundo no discurso do Ocidente: a teórica indiana entende a construção de uma identidade da diferença, que homogeiniza o sujeito colonial dentro da categoria “outro”, como uma violência epistêmica. Ela afirma, concomitantemente, que “com respeito à “imagem” da mulher, a relação entre a mulher e o silêncio pode ser assinalada pelas próprias mulheres; as diferenças de raça e classe estão incluídas nessa acusação (SPIVAK, 2010, p. 66).
Isso porque Spivak coloca em debate a noção de sujeito subalterno, que é aquele que está “às camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante” (SPIVAK, 2010, p. 12). Nesses termos, a mulher negra seria o sujeito subalterno, pois tem ocupa um lugar marginal seu direito de existência representativa negado, tendo em vista que, segundo Spivak (2010, p. 15), “não pode falar e quando tenta fazê- lo não encontra os meios para se fazer ouvir”.
O escopo da interseccionalidade dentro dos estudos de gênero, de tal maneira, se debruça sobre a necessidade de compreender, em congruência, os sistemas de opressão de classe, raça. Afinal, como afirma Suely Souza de Almeida (1998) em sua obra “Femicídio: algemas (in)visíveis do público-privado”, as relações de gênero, classe e raça se entrecruzam e aprofundam, estabelecendo um campo de forças que age com maior rigidez sobre aquelas que somam mais de uma dessas condições socialmente inferiorizadas, deixando-as mais vulneráveis à opressão.
Dentro da pauta de interseccionalidade, faz-se necessário também discutir sexismo e capacitismo, uma vez que as teorias e recortes de gênero dificilmente abrangem perspectivas e vivências de mulheres com deficiência. Em uma realidade global capacitista, a ausência de deficiência é vista como normativa, e qualquer caso diferente é visto como exceção. Assim, se o patriarcado deprecia e inferioriza meninas e mulheres afetando sua autonomia e autoestima, o peso das estruturas incide de maneira mais profunda para a população PCD. Em conformidade, é preciso que a deficiência seja encarada através do prisma da diferença humana inata, compreendendo cada mulher em sua singularidade e especificidade.
O patriarcado age com mais força e intensidade sobre alguns corpos do que outros, sendo imprescindível reconhecer essas demandas sociopolíticas plurais, de modo a derrubar as barreiras étnico-raciais que se ergueram na própria história do movimento feminista ao passo em que a pauta sufragista, no começo do século XIX, desconsiderava a vivência de mulheres não-brancas. Combinar, portanto, a ênfase no imperialismo, colonialismo, capitalismo e racismo dentro das RIs faz parte de uma demanda pós-colonial para analisar os mecanismos e instituições que fazem parte do maquinário de exploração social com uma maior profundidade, entendendo como se entrelaçam as violências.
Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Suely Souza de. Feminicídio: algemas (in)visíveis do público-privado. Rio de Janeiro: Livraria e Editora RevinteR. 1998, 176 p.
CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics. University of Chicago Legal Forum, n. 1, p. 139-167, 1989. Disponível em: https://chicagounbound.uchicago.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1052context=uclf.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizote: Editoral UFMG. 2010, 133 p.
TICKNER, J. Ann. Gendering World Politics: Issues and Approaches in the Post-Cold War Era. New York: Columbia University Press, 2001
Notas
¹ Esta e outras traduções foram feitas pelas autoras.
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