Por Bárbara Gelmini, Daniele Thomaselli e Isabela Mendes
Durante décadas, o movimento feminista tratou a luta das mulheres como universalizante, liberal e muitas vezes entrou em armadilhas por naturalizar as identidades femininas. No que se refere às mulheres islâmicas, isso não foi diferente. Inclusive, há autoras que reiteram que uma vez firmado o universalismo, abriram-se prerrogativas para intervenções imperialistas alcunhadas na defesa dos direitos das mulheres mas que, na realidade, visavam objetivos políticos e econômicos no Oriente Médio e no Norte da África. Nesse contexto, o debate sobre universalismo e multiculturalismo, Ocidente e Oriente versa significativamente sobre o feminismo islâmico (BIROLI, MIGUEL, 2014).
A partir do final do século XX, correntes importantes do pensamento feminista recusarão o universalismo em favor de algo que vai ser chamado de “política da diferença”. Há, na base dessa postura, uma crítica ao liberalismo, que sempre se afirmou como uma filosofia da universalidade. Esse discurso, que apela a valores universais e à humanidade comum de todas as pessoas, serve, com frequência, para neutralizar a compreensão do impacto que as desigualdades concretas têm sobre a possibilidade de agência autônoma dos diferentes indivíduos (MIGUEL, Luis Felipe, 2014, p.64).
Mais especificamente, o feminismo islâmico emerge como corrente de pensamento em 1990, no bojo de movimentos feministas do Oriente Médio e de diásporas muçulmanas. Em seu núcleo argumentativo, ressalta-se a crítica ao feminismo ocidental, o qual acaba por estereotipar as mulheres islâmicas, colocando-as em posição de vítimas de seus próprios costumes e de sua religião (LINHARES, 2017).
Contrariamente, o que objetiva o feminismo islâmico é fundar teoria e prática capazes de articular religião e direito das mulheres. Quando começa-se a pensar em uma perspectiva de gênero desta natureza torna-se perceptível a opressão vivenciada por mulheres no Oriente Médio. Segundo as mesmas, a subordinação não advém do Alcorão, mas sim da leitura patriarcal que se faz de suas escrituras. Nesse sentido, é em função das interpretações masculinizadas que foram constituídas normas e padrões sociais em que se centraliza a dominação masculina nos países de maioria islâmica (LINHARES, 2017).
É importante a compreensão de que a situação de opressão feminina não é exclusividade dos países do Oriente Médio: tal qual ocorre em toda sociedade patriarcal, as mulheres islâmicas lutam por direitos que lhes são negados. Não se pode esquecer de que “as noções de liberdade e opressão variam conforme o tempo e espaço” (MORETÃO, p. 10). Justamente por este motivo, é urgente que as mulheres muçulmanas deixem de ser alvo de constante estigmatização a partir de uma representação midiática que restringe e centraliza as questões tangentes ao direito feminino nesses países no debate em torno do uso do hijab. (MORETÃO, 2016).
Na Turquia, por exemplo, a batalha travada caminha justamente na direção contrária: frente a um governo secular e ocidentalizado, mulheres muçulmanas turcas enfrentam inúmeras turbulências na expressão de sua fé religiosa com o impedimento do uso do véu em inúmeras circunstâncias. Somente em 2017 as mulheres integrantes das Forças Armadas tiveram permissão para usar o mesmo, e o país tem um longo histórico de luta feminina pela integração da mulher muçulmana em instituições educacionais que também proibiam a vestimenta.
Diante desta perspectiva, é fulcral dar voz às mulheres islâmicas a fim de que elas construam interesses de um movimento feminista que as represente verdadeiramente. Livre da visão míope que as mulheres ocidentais possuem sobre seus corpos, seus símbolos e sua cultura. As percepções contemporâneas ocidentalizadas sobre o uso do véu, sobre a mutilação genital feminina, sobre o apedrejamento por adultério, o casamento forçado, e o direito a trabalhar correm o risco de cair em equívoco se não forem levados em conta os aspectos intrínsecos da visão que as islâmicas possuem sobre esses fenômenos. Já no Egito, o uso do véu está associado a status econômico e muitas outras práticas passam por mudanças geracionais. Portanto, cabe a elas - mulheres islâmicas - analisarem quais os passos a serem tomados para fazer avançar o empoderamento feminino (DAVIS, 2017).
É necessário que tomemos cuidados com as generalizações ocidentalizadas acerca da experiência feminina em países orientais, que difere a depender da nação em prisma. É urgente que as mulheres muçulmanas deixem de ser vistas como vítimas que necessitam da intervenção do feminismo ocidental, uma vez que elas se mobilizam por seus direitos frente ao que acreditam.
“Se queremos ver uma mudança real na vida de mulheres, em qualquer lugar do mundo, precisamos começar a entender melhor o que acontece nos países, como as culturas diferem - e respeitar essas diferenças, e não tentar impor uma mudança, mas sim apoiar as mulheres que vivem em cada realidade para que elas possam conquistar seus direitos da forma que considerarem melhor” (MORETÃO, 2016, p. 14)
Conclui-se que é difícil pensar em um feminismo universal visto a pluralidade de experiências femininas ao redor do globo. Sobre a relação das mulheres com a religião, Elina Vuola em seu artigo God and the Government: Women, Religion and Reproduction in Nicaragua (2001) destaca que a religião é importante para muitas mulheres, portanto é inviável pensar em um feminismo secular. A autora também alerta que o feminismo ocidental deve tomar o cuidado de não julgar a religião como opressora das mulheres, e defende a necessidade de escutar as diferentes vozes das mulheres reais do mundo todo. (VUOLA, 2001, p.4).
Segundo a autora Amina Wadud, no Alcorão as mulheres sempre são citadas com respeito. Em sua análise a autora diferencia a mulher enquanto indivíduo e a mulher enquanto membro da sociedade pois a relação entre Allah e o indivíduo não tem gênero, não havendo, portanto, diferenças de direito no tocante à espiritualidade feminina e masculina. (WADUD, 1999, p.34).
Portanto, ao pensar especificamente no islamismo, é necessário perceber que a leitura do Alcorão a partir de uma perspectiva feminista resulta em interpretações não patriarcais. Dar voz para a interpretação feminina é uma forma, inclusive, de lutar por espaço na produção de conhecimento.
Referências Bibliográficas
BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política: uma introdução. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2014.
DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. Boitempo Editorial, 2017. p.106-131.
LINHARES et al. Feminismo, Oriente Médio e Relações Internacionais: uma visibilização importante. In: Nono Congresso Latino-Americano de Ciência Política. 2017. Montevidéu, Uruguai. Disponível em: <http://www.pt.congresoalacip2017.org/arquivo/downloadpublic2?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozNToiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjQ6IjI5OTEiO30iO3M6MToiaCI7czozMjoiZGU0MjdhYzg4NTRiZWQ3YTg0NDYxODBhOGZkNTcwOGMiO30%3D>. Acesso em: 4 ago. 2020.
MORETÃO, Amanda S. Entre a modernidade e a tradição: Empoderamento feminino no Irã e na Turquia. Jundiaí: Paco Editorial. 1a de. 2016. 164 p.
WADUD, Amina. 1999. Qur’an and Women. Rereading the sacred text from a woman’s perspective. Nueva York, Oxford University Press.
VUOLA, Elina. 2001. God and the government: Women, religion, and reproduction in Nicaragua. Documento para el Encuentro de la Latin American Studies Association (LASA). Washington DC, Septiembre 6-8. [documento PDF]. Disponible en: http://lasa. international.pitt.edu/lasa2001/vuolaelina.pdf.
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