por Isabela Mendes
O intuito deste texto é trazer ao debate a proposta de Nova Constituição do Chile, à luz da lente de gênero. Para isso, iniciaremos com uma breve introdução histórica até chegarmos ao contexto atual. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, o modelo econômico de Bem Estar Social, pautado em políticas keynesianas e na colaboração entre os Estados permeou o Sistema Internacional. Porém, a partir dos anos 1970, esse modelo econômico entrou em crise. Apesar de não haver consenso entre os economistas, entre as explicações estão a dificuldade de harmonizar os gastos públicos, a pressão da classe empresarial por menos intervenção estatal e a ascensão do capital financeiro. Nas potências mundiais, como Inglaterra e Estados Unidos (EUA), respectivamente sobem ao governo, Thatcher e Reagan, adotando pautas neoliberais.
O Chile, de 1970 a 1973, estava sob o governo de Allende, caracterizado pela socialização da economia e pela reforma agrária. Allende foi eleito com a expectativa de combater desigualdades sociais e de implantar o socialismo por vias democráticas. Apesar de não ter o apoio do Congresso, nacionalizou o cobre, o que causou sanções ao Chile devido ao descontentamento dos EUA. A economia foi desestabilizada, a inflação alcançou 400% e Pinochet liderava a Junta Militar que maquinou o golpe de 1973. Allende se suicidou no Palácio Presidencial, num contexto de golpes na América Latina, iniciou-se a Ditadura Pinochet, uma das mais sangrentas da região. Nesta Ditadura, quem pensou a economia foram os Chicago Boys, intelectuais que após completarem seus estudos nos EUA, voltaram ao Chile prontos para implantar o modelo econômico neoliberal. Sobre a Constituição, com o golpe, o Congresso foi dissolvido, e em 1980 foi promulgada a Constituição Atual (de Pinochet). Em 1988, foi colocado em prática um referendo, pelo qual a população decidiu pelo fim da Ditadura, e em 1989 ocorreram as eleições presidenciais, que elegeu Patrício Aylwin. (LETELIER, 1976; GALEANO, 2000).
Em dezembro de 2021, o Chile passou pelo segundo turno das eleições presidenciais. Na Extrema Direita, Kast era o candidato do Partido Republicano e Gabriel Boric candidato da coalizão de Esquerda, representando o Partido Comunista. O Chile é um país historicamente moderado, mas viu-se a tendência de polarização política com o enfraquecimento dos partidos de Centro, o discurso extremista da Direita, valendo-se da questão migratória no Norte do país, enquanto a esquerda escrevia uma Nova Carta Magna. A Constituinte foi aprovada por um plebiscito (78% a favor), em outubro de 2020, fruto dos protestos de 2019, durante o governo Piñera, no qual a população demandava melhores condições sociais em um país em que, de acordo com a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), em 2017, 1% da população concentrava 26,5% da riqueza do país, enquanto 50% da população mais pobre correspondia a 2,1% da riqueza do Chile. (COSTA, 2021).
A Nova Carta Magna foi o primeiro documento a ser redigido de forma paritária por homens e mulheres (78 homens e 77 mulheres), visando tornar o sistema político do país mais participativo e representativo. A Presidência da Comissão conta com duas lideranças femininas: Elisa Loncón, em 2021 e Maria Elisa Quinteros, em 2022. Na Comissão de Direitos Fundamentais: Janis Meneses, abertamente feminista.
Na primeira proposta, o Chile foi descrito como paritário e regional e propôs que 50% dos cargos de todos órgãos e empresas públicas fossem preenchidos por mulheres, e incentivou a iniciativa no setor privado. No Congresso, uma porcentagem foi proporcionalmente destinada aos indígenas. Além disso, contou com o princípio de regionalidade, dando mais autonomia para os governos regionais e municipais, o texto afirmou que “ as políticas públicas devem ser “pertinentes às necessidades territoriais” e “adaptadas às diversas realidades locais”. (CHILE, 2022).
No Legislativo, propôs o fim do Senado e a criação da Câmara das Regiões, cuja finalidade seria avaliar as leis de impacto regional e analisar junto ao Congresso as nomeações que precisam da aprovação do Legislativo. Nesse novo órgão proposto, cada uma das 16 regiões teria ao menos 3 representantes. (CHILE, 2022).
No Executivo, manteve-se o presidencialismo, e a idade mínima para a presidência baixou de 35 para 30 anos, com a novidade da possibilidade de 2 mandatos seguidos (na antiga Constituição podia-se ter dois mandatos mas não de forma consecutiva). Sobre os direitos sociais, o Estado deve contribuir para a criação de condições sociais, e por ser um Estado social e democrático de Direito, tem a obrigação de garantir direitos básicos aos cidadãos. É proposto um Sistema Nacional público e gratuito para a educação, saúde e previdência, além da garantia de direito ao trabalho e moradia digna, à alimentação e à remuneração equitativa, justa e suficiente. (CHILE, 2022).
Sobre a interculturalidade do país, a Carta reconheceu 11 etnias e nações indígenas e estabeleceu a criação de mecanismos para a demarcação de terras indígenas. Sobre os direitos individuais, diferentemente da Constituição de Pinochet, abrangeu sua proteção, assegurou o direito ao aborto e pela primeira vez mulheres e a comunidade LGBTQIA+ são mencionadas. O novo texto defendeu o direito à vida livre de violência de gênero, garantiu direitos sexuais e reprodutivos, incluindo o “gozo pleno e livre da sexualidade, do autocuidado e do consentimento”. Também afirmou que o trabalho doméstico e de cuidado, exercido majoritariamente por mulheres, “são empregos socialmente necessários e essenciais para o desenvolvimento da sociedade''. “Constituem uma atividade econômica que contribui para as contas nacionais e deve ser considerada na formulação e execução de políticas públicas”. (CHILE, 2022).
Por fim, o Chile enquanto Estado Ecológico, deveria “adotar medidas para “prevenir, adaptar e mitigar os riscos causados pela crise climática e ecológica”. “Inclui ainda regulamentos que garantem proteção a ecossistemas-chave como geleiras e pântanos. Também em relação ao meio ambiente, o documento quebrou os monopólios corporativos de recursos naturais, como a água. No Chile o mercado de água é totalmente privatizado”. (CHILE, 2022).
Essa proposta de Nova Constituição foi apresentada em julho de 2022 para o presidente eleito Gabriel Boric, mas o texto foi rejeitado, em setembro, por 62% dos votos. Boric, após esse resultado fez um pronunciamento:
O povo chileno não ficou satisfeito com as propostas e decidiu rejeitá-las claramente. Esta decisão exige que as instituições trabalhem com mais empenho e diálogo até chegarem a uma proposta que dê confiança e nos una como país. Não esqueçamos por que chegamos aqui: o mal-estar ainda está latente e não podemos esquecê-lo. Prometo liderar "um novo itinerário" para chegar a um texto "que consiga interpretar uma ampla maioria de cidadãos. Apelo a todas as forças políticas para que coloquem o Chile à frente e concordem o quanto antes com um prazo para um novo processo constitucional. O Congresso Nacional deve ser o principal protagonista. (BORIC, 2022).
Sobre a rejeição do novo texto, a professora Regiane Bressan analisou que as fakes news espalhadas entre o eleitorado contribuíram para o alto índice de rejeição. Além da desaprovação do novo presidente eleito, Gabriel Boric. Mas apesar de não ter sido aprovado, o novo texto, essa proposta de uma Nova Constituição, é extremamente inovadora e inspiradora para o movimento feminista da América Latina. Fato interessante exemplo disso é que, até 2004, o divórcio era proibido no Chile, e ainda em 2020 uma lei proibia apenas mulheres de se casarem novamente antes de 270 dias após o divórcio. Em 2017, o aborto não era legalizado nem em casos de estupro e risco à vida da mãe. Apenas em 2020, a Lei Gabriela reconheceu como feminicídio os casos de assassinatos entre casais de namorados ou fora de relação amorosa. Em 2021, na esperança de conquistar um direito recentemente conquistado pelas feministas argentinas, foi aprovada na Câmara uma proposta de descriminalização do aborto, porém esta foi rejeitada e arquivada. No primeiro texto da Nova Constituição foram abordados os direitos reprodutivos e outros temas voltados aos direitos das mulheres, e isso deve servir de inspiração para todo o movimento na América Latina. (BORGES, 2021).
Dia 7 de maio deste ano, foi eleito o Conselho Constituinte do Chile e o Partido Republicano foi o mais votado, portanto contribuiu com 22 deputados do total de 51. Seu líder, Kast, perdeu as eleições de 2021 para Boric, atual presidente. A coalizão de esquerda contribuiu com apenas 17 deputados, os outros 11 deputados são do grupo conservador Chile Seguro. A ironia de, uma nova proposta de Constituição fruto de protestos de esquerda, por melhores condições sociais, mas com a maior parte da Constituinte composta por partidos de direita, mostra a importância da união da esquerda não apenas no Chile, mas a nível interméstico na América do Sul e reflete a falta de consciência de classe da população.
A nova proposta, o segundo texto, traz as seguintes mudanças para o texto base:
Estado Unitário ao invés da criação de comunidades;
Saúde não universal mas limitada à população mais vulnerável;
Educação gratuita apenas até o Ensino Médio;
Exploração do solo sem tantos critérios ambientais;
Uso da água sujeito a licenciamento médio internacional ao invés de a rígidas leis ambientais.
Contudo, apesar de menos progressista e inclusivo em relação ao texto anterior liderado pela esquerda, o atual processo constituinte contou com alta participação popular e as organizações civis estão se articulando para propor projetos de leis. Até 7 de novembro a proposta final deve ser apresentada para ir a plebiscito em 17 de dezembro.
REFERÊNCIAS:
CHILE. [Constituição (2021)]. CONSTITUCIÓN POLÍTICA DE LA REPÚBLICA DE CHILE. Chile: [s. n.], 2021. 173 p. Disponível em: https://siteal.iiep.unesco.org/sites/default/files/sit_accion_files/constitucion.pdf. Acesso em: 10 out. 2022.
CHILE rejeita proposta de nova Constituição. BBC News Mundo. Setembro de 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62791155.
COSTA, B. Eleger um novo presidente e escrever uma nova constituição: qual é o futuro do Chile?. Instituto Update, Dezembro de 2021. Disponível em: https://www.institutoupdate.org.br/eleger-um-novo-presidente-e-escrever-uma-nova-constituicao-qual-e-o-futuro-do-chile/?gclid=Cj0KCQjw48OaBhDWARIsAMd966Bcu4Gnegzl-iRAr55n40pUebSyGh1T1FYO1FL7E1OYhy1PXsFms8waAtlPEALw_wcB
GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. Tradução de Galeno de Freitas. 39ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. 307p. Título original: Las venas abiertas de América Latina. (Coleção Estudos Latino-Americanos, v.12)
LETELIER, Orlando. The ‘Chicago Boys’ in Chile: Economic Freedom’s Awful Toll. The Nation, Washington D.C. Agosto, 1976.
PETCAST 32: O Chile e a Nova Constituinte. Entrevistada: Elisa Borges. Entrevistadores: Victoria Machado e Giovanna Teperino. Rio de Janeiro, 6 jun. 2021. Podcast disponível em: https://open.spotify.com/episode/58cvqComf1f3fYZtPOWNF2
SOARES, Leandro Machado. ANÁLISE DO CRESCIMENTO DA ECONOMIA CHILENA NO PERÍODO 1973-2006. Rio de Janeiro, 2009. Monografia (Bacharelado em Economia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro.
SOUZA, R. Veja cinco pontos para entender o plebiscito da Nova Constituição do Chile. CNN Brasil, São Paulo. Agosto de 2022. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/veja-cinco-pontos-para-entender-o-plebiscito-da-nova-constituicao-do-chile/
Comments