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A Narrativa da Caça às Bruxas: um Conto para além da Idade Média

Por:Emily Campos

Franciely Portela


Como se os corpos não tivessem vida, como se a carne não fosse humana, a caça às bruxas tem sido contada ao longo dos séculos em uma narrativa que beira o Folclore, entre banshees, fadas, lobisomens e monstros que se esgueiram no inconsciente de crianças cujas perspectivas estão sendo construídas. Condizente com a Idade das Trevas, as chamas que estalavam das fogueiras carregavam não apenas o simbolismo de uma luz sendo despejada sobre heresias e desvios religiosos que açoitavam — principalmente — a comunidade europeia, mas se encarregavam também da tortura e extermínio de mulheres que fugiam das expectativas patriarcais rumo à independência.

Entre algumas definições encontradas em dicionário, bruxa é toda aquela (i) "mulher que, segundo a crença popular, tem o poder de empregar forças sobrenaturais para influenciar ou dominar outras pessoas por meio da magia, em geral para causar danos ou malefícios; mulher dada a práticas de prever o futuro e fazer sortilégios; feiticeira, sibila" (MICHAELIS, online); (ii) "mulher muito velha e feia; bruaca, jabiraca, megera" (MICHAELIS, online); e, (iii) "mulher mal-humorada e rabugenta; rabuja, ranheta, ranzinza" (MICHAELIS, online). Ambígua, a imagem da bruxa pode também ser encontrada como uma bela e jovem mulher solteira. Ainda que nesse conceito as bruxas não estejam ligadas à uma imagem física degenerada, suas personalidades continuam atreladas à perversidade, como uma mulher “fatal, mortífera, causa da perdição” (ZORDAN, 2005), relacionadas sobretudo à infidelidade por serem disseminadoras de luxúria e obscenidade.

Esses aspectos exemplificam a imagem que, historicamente, o Estado, o patriarcado, a Igreja e o capitalismo — enquanto instituições — buscaram construir das "bruxas", cujos “poderes” provinham, conforme a lógica patriarcal, “de sua convivência com os demônios” (ZORDAN, 2005, p. 333), quando, em verdade, eram mulheres que exerciam dentro de suas comunidades papéis como médicas, parteiras, adivinhas ou feiticeiras do vilarejo, cujas práticas de magia as quais eram relacionadas perpassavam atividades como marcar os animais quando adoeciam, curar vizinhos, ajudar a encontrar objetos perdidos ou roubados, dar amuletos ou poções para o amor e ajudar a prever o futuro.

Movidos pela desconfiança e pelo medo, a população dos países europeus se debruçou em uma histeria generalizada, de forma que até mesmo mulheres que não pertenciam de fato à bruxaria, mas ainda assim eram acusadas, passaram a acreditar que eram bruxas e que possuíam um “pacto com o demônio", quando, na verdade, "as pessoas que praticavam esses rituais eram majoritariamente pobres que lutavam para sobreviver, sempre tentando evitar o desastre e com o desejo, portanto, de 'aplacar, persuadir e inclusive manipular estas forças que controlam tudo [...] para se manter longe de danos e do mal, e para obter o bem, que consistia na fertilidade, no bem-estar, na saúde e na vida'" (FEDERICI, 2017, p. 313).

Para além destas que possuíam uma fonte de renda ainda que mínima, ortodoxa ou não, haviam “bruxas” que nada mais eram senão as mulheres em condição de miséria e camponesas que roubavam por sobrevivência, infringindo a noção de propriedade privada e direito aos bens que se buscava consolidar naquele período da história.

Nesse sentido, essa concepção acerca das bruxas não surgiu de forma espontânea, mas foi resultado de uma campanha de terror fruto da Santa Inquisição instaurada pela Igreja Católica, a classe dominante até então, que “se apresentava como autoridade secular nas campanhas misóginas” (OLIVEIRA, 2019, p. 11). Sob os parâmetros religiosos, as bruxas poderiam ser traduzidas como “mulheres devoradoras e perversas que matavam recém-nascidos” (ZORDAN, 2005, p. 332). Hoje, interpreta-se que uma definição como essa está ligada não ao canibalismo ou a violência sádica, mas à luta da mulher quanto ao próprio corpo, sobre o direito de tornar-se ou não um indivíduo materno, de ter pleno controle de sua sexualidade sem que esta seja sinônimo de bestialidade. O desejo “da matéria” era tido como uma “perdição para o espírito”, e consequentemente os atos de abortar ou ter uma relação sexual que não para fins reprodutivos eram considerados bruxaria (ZORDAN, 2005). Nessa lógica,


[a] caça às bruxas não só condenou a sexualidade feminina como fonte de todo mal, mas também representou o principal veículo para levar a cabo uma ampla reestruturação da vida sexual, que, ajustada à nova disciplina capitalista do trabalho, criminalizava qualquer atividade sexual que ameaçasse a procriação e a transmissão da propriedade dentro da família ou que diminuísse o tempo e a energia disponíveis para o trabalho. (FEDERICI, 2017, p. 349-350).


Com a consolidação dos Estados-nação, a caçada extrapolou a ordem religiosa católica e intensificou-se, quando "tanto as nações católicas quanto as protestantes, em guerra entre si quanto a todas as outras temáticas, se uniram e compartilharam argumentos para perseguir as bruxas" (FEDERICI, 2017, p. 303). Sob essa perspectiva, uma combinação de fatores que abrangia questões econômicas e sociais levou a caça às bruxas a atingir seu ápice na Europa dos séculos XVI a XVII. As relações feudais que conduziam a economia durante esse período entraram em declínio, dando lugar a um novo sistema econômico baseado em ideais capitalistas. Dois séculos antes, com o fim da peste negra e um significativo déficit de 1⁄3 da população europeia, a mulher que já era uma figura trabalhadora passou a ser, também, a “(re) produtora que sustentara e garantira a mão de obra do sistema capitalista” (OLIVEIRA, 2019, p. 9), tornando-se um mero ventre que alimentaria a então iniciada guerra ao feudalismo (OLIVEIRA, 2019).

Conforme Federici (2017), ao reconhecer que o desejo sexual conferia às mulheres certo “poder” sobre os homens, o clero atuou persistentemente em uma forma de “exorcizá-lo”. Nesse sentido, a sexualidade passou a ser considerada um “objeto de vergonha”, sendo um dos “meios pelos quais uma casta patriarcal tentou quebrar o poder das mulheres e de sua atração erótica” (FEDERICI, 2017, p. 80). Com isso, um chamado “contrato sexual” surgiu, criando a conhecida divisão sexual do trabalho, ocultando as mulheres de suas condições como mão de obra — antes feudal e então capitalista — levando-as a se tornarem “bens comuns”, uma vez que, ao suas atividades deixarem de ser consideradas como trabalho, “o trabalho das mulheres começou a se parecer com um recurso natural, disponível para todos, como o ar que respiramos e a água que bebemos.” (FEDERICI, 2017, p. 191).

Como uma clara apropriação primitiva e machista, a ascensão do capitalismo como sistema econômico foi uma derrota histórica para as mulheres (FEDERICI, 2017), levando seu trabalho reprodutivo à desvalorização e desumanização, isso porque


(...) na Europa pré-capitalista, a subordinação das mulheres aos homens esteve atenuada pelo fato de que elas tinham acesso às terras e a outros bens comuns, enquanto no novo regime capitalista as próprias mulheres se tornaram bens comuns, dado que seu trabalho foi definido como um recurso natural que estava fora da esfera das relações de mercado. (FEDERICI, 2017, p. 192).


O potencial da mulher como um dos alicerces na construção do capital econômico e não apenas como meio de reprodução de mão de obra foi anulado de tal forma que, ao se pensar em caça às bruxas, desconsidera-se os homens que também praticavam adorações e rituais, enquanto ao se tratar o nascimento do capitalismo, a imagem dos homens está intrínseca ao desenvolvimento social — isso quando não se considera as análises feministas das relações de poder.

Como pode-se esperar de processos de colonização e (semi)globalização, a caça às bruxas não se limitou unicamente à Europa. As acusações que açoitavam as mulheres europeias foram replicadas, por exemplo, aos povos indígenas americanos, no conhecido Mundo Novo, como “uma estratégia deliberada, utilizada pelas autoridades com o objetivo de propagar terror, destruir resistências coletivas, silenciar comunidades inteiras e instigar o conflito entre seus membros.” (FEDERICI, 2017, p. 382). Embora a relação dos indígenas com a natureza e as religiões locais tenha sobrevivido “à perseguição devido principalmente à luta das mulheres, proporcionando uma fonte de resistência anticolonial e anticapitalista durante mais de quinhentos anos.” (FEDERICI, 2017, p. 382), a narrativa da "caça às bruxas" e as acusações de adoração ao demônio foram levadas para os territórios colonizados de forma a justificar a colonização, o tráfico de escravos e o genocídio.

Não por acaso, ainda que toda essa narrativa pareça exclusiva de séculos passados, a prática de "caça às bruxas" permanece na atualidade, sobretudo em territórios colonizados. Segundo relatório do comitê de especialistas do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, "em muitas comunidades, ser acusada de bruxaria equivale a receber uma sentença de morte" (MORENO, 2021, online). Nesse documento, foram relatadas 22 mil vítimas nos últimos 10 anos, com estimativa de que esse número seja maior, uma vez que muitos desses crimes ocorrem em territórios de difícil acesso e em áreas de baixa luminosidade.

Progressivamente, um maior número de casos desse tipo de crime é registrado em países como a República Democrática do Congo, Angola, Nigéria, Gana, Quênia, Nepal, Papua-Nova Guiné e Arábia Saudita, sendo, inclusive, uma prática legal em alguns desses. Na Arábia Saudita em questão, "foi criada uma 'Unidade Anti-Bruxaria’ na polícia em 2009 e a pena de morte ainda está em vigor para essa acusação" (MORENO, 2021, online).

A "caça às bruxas" atual tem como vítimas alguns grupos principais, como crianças acusadas de possessão demoníaca, pessoas com transtornos mentais e diferentes deficiências, assim como pessoas com albinismo e mulheres. Essa prática nociva possui muitas motivações, mas destaca-se um aspecto peculiar: o mercado extremamente lucrativo em torno dessa caçada, uma vez que "'taxas exorbitantes' podem ser cobradas por exorcismos, por caçar alguém acusado de bruxaria ou por curar quem tenha sido enfeitiçado" (MORENO, 2021, online).

No caso das mulheres da Índia, por exemplo, aquelas "que vivem sozinhas e são independentes financeiramente muitas vezes são acusadas de serem bruxas para que seu patrimônio seja roubado" (MORENO, 2021, online). No Brasil, em 2014, Fabiane Maria de Jesus foi espancada e morta no Guarujá, no litoral de São Paulo, ao ser confundida com uma suposta sequestradora de crianças.

Para Silvia Federici, em entrevista durante sua passagem pelo Brasil em 2019,


(...) os episódios atuais acompanham a expansão das relações capitalistas para todos os cantos do mundo, marcada pela expropriação de terras e de outros recursos naturais de populações locais. Nesse contexto, as mulheres, por serem o principal foco de resistência a essas mudanças, acabam sendo as principais vítimas da violência acarretada por essas novas relações. Portanto, estudar a caça às bruxas de séculos atrás ajuda a compreender o aumento da violência contra a mulher dos últimos anos. (CARVALHO, 2019, online).


Ainda que as narrativas de justificativa para essa "caçada" tenham mudado, as vítimas continuam sendo grupos sociais marginalizados e, sobretudo, mulheres. Sob essa perspectiva, não é surpreendente notar como o capitalismo e o patriarcado enquanto instituições continuam na raiz desse problema em uma análise mais contemporânea, apropriando-se dos corpos e das existências de minorias e grupos vulneráveis em busca de lucro e da manutenção dos valores de cada uma dessas instituições sociais.


REFERÊNCIAS


BRUXA. In: MICHAELIS, Michaelis On-line. São Paulo: Melhoramentos, 2021. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/bruxa>. Acesso em: 25 out. 2021.


CARVALHO, Paula. Caça às bruxas ajuda a entender o aumento de feminicídios, diz Silvia Federici. Folha de São Paulo, São Paulo, 24 set. 2019. Disponível em: <https://www.quatrocincoum.com.br/br/entrevistas/ciencias-sociais/caca-as-bruxas-ajuda-a-entender-aumento-de-feminicidios-diz-silvia-federici>. Acesso em: 27 out. 2021.


FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017. Tradução: Coletivo Sycorax.


MORENO, Jesús. Por que mulheres são mortas até hoje sob acusação de 'bruxaria'. BBC News Brasil, 17 set. 2021. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-58560697> Acesso em: 27 out. 2021.


OLIVEIRA, Brígida de Souza. Herdeiras da inquisição: uma análise de violência contra a mulher no desenvolvimento do capitalismo. 2019. 20 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em História) - Unidade Delmiro Gouveia - Campus do Sertão, Curso de História, Universidade Federal de Alagoas, Delmiro Gouveia, 2018.


ZORDAN, Paola Basso Menna Barreto Gomes. Bruxas: figuras de poder. Revista Estudos Feministas [online]. 2005, v. 13, n. 2 [Acessado 25 Outubro 2021] , pp. 331-341. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0104-026X2005000200006>. Epub 12 Dez 2005. ISSN 1806-9584.



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