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A Luta Política das Mulheres Negras Latino Americanas e Caribenhas



Por: Giovana Cecilio


De acordo com as teorias decoloniais, a construção do dito mundo moderno como o conhecemos hoje é fruto dos processos de colonização que tiveram seu início a partir da América Latina. (QUINTERO et al., 2019) Com ele, surgiram conceitos e formas para subjugar tanto os povos originários de Abya Yala - denominação do povo Kuna para o que entendemos como continente americano -, quanto as pessoas negras trazidas à força para o continente e para as ilhas caribenhas. A exploração destes indivíduos levou ao desenvolvimento das metrópoles e enriquecimento das elites, como recompensa seus direitos políticos e humanos nunca foram totalmente concedidos. Com as diversas lutas por liberdade nasceram novas repúblicas, novas constituições e uma independência certamente vigiada. O fim da colonização oficial de uma nação por outra destacou as hierarquias coloniais dentro das antigas colônias, cujas bases permanecem sustentadas pelos grupos oprimidos, englobando as mulheres negras, em um arranjo que permite pouquíssima mobilidade social.

A história do povo negro em diáspora, em particular das mulheres negras pode ser compreendida de modo resumido pelo termo “coisificação”. Com o início do tráfico negreiro há a construção de uma nova identidade para essa mulher, a qual passa a ser vista então como mulher-objeto, mulher-sexo, mulher-labor. De acordo com o artigo de Georgina Helena Nunes, Mulheres negras e quilombolas: trabalho, resistência e identidades na diáspora afro-brasileira, seu status surge do encontro entre duas condições subalternizadas, gênero/mulher e raça/negra. Para que funcione, essa coisificação faz uso de sistemas de coerção que visam domar o corpo e a mente, de forma que o ímpeto de agir em prol da própria liberdade e da transformação social seja apagado. (2009) A disseminação do ideário da América Latina, em especial do Brasil, como uma democracia racial, práticas de encarceramento e esterilização em massa são exemplos de discurso e práticas usados por este sistema.

É preciso ainda adicionar uma terceira condição às supracitadas, a econômica. Apesar das mulheres negras conquistarem o título de cidadãs livres, a lógica social e econômica escravista continuou presente através da marginalização, da falta de reparação e de assistência. Os empregos disponíveis eram referentes à prestação de serviço, especialmente como empregadas domésticas, nova denominação para o papel de mucama. (TOKITA, 2013) Desta forma, o lugar resguardado às mulheres negras foi o do subemprego, demandando que entrem precocemente no mercado de trabalho para ocupar posições que exijam baixa escolaridade e saiam mais tarde, muitas vezes sem garantias de estabilidade financeira. (SANTOS, 2020) Segundo pesquisa publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, dados apontam que mulheres negras recebem em média 44,4% dos salários dos homens brancos. Mesmo quando analisado por categorias de escolaridade e de ocupação - como formal ou informal -, continua havendo diferença salarial no exercício da mesma função. (IBGE, 2019)

Apesar das tentativas de findar com a força e subjetividade dessas mulheres e transformá-las em uma massa de trabalho homogênea e de fácil controle, elas vêm buscando a conquista de um lugar social digno desde o período colonial através de revoltas urbanas e rurais e da formação de quilombos em países como Brasil, Colômbia e Nicarágua, até a contemporaneidade por intermédio de movimentos sociais. Com isso, percebe-se que a luta das mulheres negras em diáspora tem início com os processos de colonização, bem antes da própria “formalização” do(s) movimento(s) feminista(s). E, quando este passa a ter maior visibilidade, a universalização baseada na experiência da mulher branca de classe média exclui das conquistas as mulheres negras, indígenas, camponesas e de outros grupos invisibilizados. (GONZALEZ, 2008; TOKITA, 2013; DAS GRAÇAS, 2020)

Os movimentos feministas latino-americanos passaram por três etapas. A primeira diz respeito às lutas por democratização e igualdade de acesso à esfera pública; a segunda se dá na resistência política e armada durante as ditaduras no continente e pela oposição ao sexismo, violência e privação do prazer; e a terceira foi marcada pela participação feminina nos processos de redemocratização e reformas constitucionais, e também pela tentativa - a partir das mulheres esquecidas pelo movimento feminista - de romper com essa exclusão. (DAS GRAÇAS, 2020) Para a mulher negra, percebida como o “outro”, fez-se necessária a criação da categoria “feminismo negro”, pois o feminismo nascido na Europa definiu tanto o que é ser mulher e feminista, quanto as formas de subordinção e por consequência as possibilidades de emancipação. (LOZANO LERMA, 2010)

Essa quebra na homogeneização produziu consequências sobre políticas estatais, porém de forma bastante superficial, pois os Estados comprometeram-se com tratados e conferências internacionais que versavam sobre gênero que eram moldados pelo interesse das potências mundiais e não com as demandas específicas dentro de suas próprias fronteiras. (DAS GRAÇAS, 2020) Percebe-se então o que Lugones (2008) denomina de “Sistema Moderno-Colonial de Gênero”, em que mulheres colonizadas são inferiorizadas, sendo o fator raça uma categoria estruturante desse sistema, operando nos âmbitos nacional e internacional.

As mulheres negras da América Latina e Caribe tem lutado e se organizado em associações e movimentos nacionais, bem como no espaço internacional para demandarem maior participação política, terem seus direitos assegurados e mostrar o descontentamento com o movimento feminista e o movimento negro que colocam suas pautas como de segunda ordem ao carecerem de pensamento interseccional. De suas lutas, em 1992 ocorreu em Santo Domingo, capital da República Dominicana, o 1º Encontro de mulheres negras da região e instituiu-se o Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha em 25 de julho. Apenas em 2014 a data foi oficializada no Brasil, tendo a figura de Tereza de Benguela como símbolo. Assim, 25 de julho também é o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. (PORTAL GELEDÉS, 2018)

A luta feminista negra construída em sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas como as da América Latina e ilhas caribenhas, exige articulação entre as desigualdades ocasionadas pela hierarquia de gênero, a superação de ideologias racistas e de opressões de classe. Essa articulação concebe uma nova identidade política para as mulheres negras como manifestantes dessas intersecções. (CARNEIRO, 2020) No cenário internacional, as mulheres negras em diáspora na América Latina e Caribe ocupam um lugar particular devido às condições de subjugação e exploração da região. Suas reivindicações ecoam não somente como interesses das sujeitas do grupo, mas trazem atenção para questões abrangentes que almejam levar à emancipação da população latino americana e caribenha.

Sueli Carneiro (2020) aponta que os movimentos de mulheres negras tem desenvolvido uma perspectiva internacionalista devido à dificuldade de frear práticas genocidas promovidas pelos Estados e também pela tomada de consciência de que a globalização regida pela ordem neoliberal acentua a feminização da pobreza, condicionando-as à exploração. Portanto, se faz necessária a articulação da sociedade civil em nível mundial, o que vem acontecendo através do desenvolvimento de ações regionais, participação em fóruns e conferências junto a governos e outros movimentos e a inclusão de suas perspectivas em pautas e projetos internacionais.

A criação da Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas y de la Diáspora é um exemplo dessa articulação. Criada durante o encontro em Santo Domingo para servir de espaço e instrumento político para movimentos de mulheres negras, atualmente conta com integrantes de 30 países e visa a construção de sociedades verdadeiramente democráticas, equitativas e multiculturais. Nos primeiros três anos, o foco da rede foram os temas apresentados nas Conferências da ONU, contudo, a partir de 1996 passou a ser a interpelação dos Estados em relação aos seus direitos, sempre conectando o combate ao racismo à justiça sexual e de gênero e à justiça econômica. (RMAAD, 2018) A RMAAD pode então ser compreendida como uma manifestação da internacionalização das lutas políticas das mulheres negras.

O advento das redes sociais e o maior acesso às plataformas de comunicação virtuais tem sido uma ferramenta na cooperação e formação de redes como a RMAAD entre grupos de mulheres negras na América Latina e Caribe. O compartilhamento de experiências e informações incentiva, entre outras coisas, a prática política e a transnacionalização dos movimentos sociais. No geral, essas novas dinâmicas virtuais entre/dos movimentos de mulheres negras da região tem sido benéficas, tornando mais acessíveis debates e facilitando o apoio político, jurídico e econômico. Ainda, o espaço virtual possibilita maior visibilidade do que a tida em espaços públicos de representação e tomada de decisão, assim como permite que pessoas com vivências não atravessadas pelas violências sofridas pelo grupo, tomem consciência sobre o papel que precisam desempenhar na construção de um mundo melhor.

É importante, porém, salientar que tanto com a transnacionalização como com o aumento de visibilidade dentro dos Estados, as pautas podem ser condensadas para que se tornem mais abrangentes e palatáveis à população geral. Isso pode resultar na descaracterização das demandas locais e perda de força dos ideais emancipatórios. (DAS GRAÇAS, 2020) Ficam então os questionamentos: no contexto em que vivemos, os movimentos de mulheres negras latino-americanas e caribenhas correm o risco de serem massivamente cooptados pela lógica neoliberal que os subjuga? Como poderiam as mulheres negras se verem livres sem o fim de todos os tipos de opressão? E como poderia haver o fim dessas opressões a partir da ascensão individual a espaços de poder? Não pode ser esse o poder que queremos. Lélia Gonzalez (1935-1994) ao defender o conceito de amefricanidade, explica que as mulheres amefricanas tem suas diferenças transformadas em desigualdades precisamente pelo “capitalismo patriarcal-racista dependente”. Historicamente, a luta contra a expropriação socioeconômica é inerente à resistência das amefricanas. Cumplicidade com posturas ideológicas de exclusão descaracteriza toda a trajetória das mulheres negras na América Latina e Caribe, impossibilitando que a transformação social chegue a todas.



Bibliografia


CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. Racismos contemporâneos. Rio de Janeiro: Takano Editora, v. 49, p. 49-58, 2003.


GONZALEZ, Lélia. Mulher negra. In: Guerreiras da natureza: mulher negra, religiosidade e ambiente / Elisa Larkin Nascimento, (org). São Paulo: Selo Negro, 2008


GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2020.


GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo brasileiro, v. 92, n. 93, p. 69-82, 1988.


INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (Brasil). Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Estudos e Pesquisas: Informação demográfica e socioeconômica, Rio de Janeiro, v. 41, p. 1-12, 2019. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 21 jul. 2021.


LOZANO LERMA, Betty Ruth. El feminismo no puede ser uno porque las mujeres somos diversas: aportes a un feminismo negro decolonial desde la experiencia de las mujeres negras del Pacífico colombiano. Teoría y pensamiento feminista, 2010.


LUGONES, María. Colonialidad y Géreno. Tabula Rasa. Bogotá – Colômbia, nº 9: p. 73-101, Julio-diciembre, 2008.


NUNES, Georgina Helena Lima. Mulheres negras e quilombolas: trabalho, resistência e identidades na diáspora afro-brasileira. Educação e Formação, p. 157, 2012.


PORTAL GELEDÉS. 1) Tereza de Benguela (Brasil). In: PORTAL GELEDÉS. Conheça dez mulheres negras que fizeram história na América Latina e no Caribe. [S. l.], 1 ago. 2018. Disponível em: https://www.geledes.org.br/conheca-dez-mulheres-negras-que-fizeram-historia-na-america-latina-e-no-caribe/. Acesso em: 20 jul. 2021.


QUINTERO, Pablo; FIGUEIRA, Patrícia; ELIZALDE, Paz Concha. Uma breve história dos estudos decoloniais. MASP Aftrall. Amanda Carneiro (Org.). Tradução de Sérgio Molina e Rubia Goldoni. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, p. 1-12, 2019.


RED DE MUJERES AFROLATINOAMERICANAS, AFROCARIBEÑAS Y DE LA DIÁSPORA (Nicarágua). Posición de la Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas y de la Diáspora, RMAAD, ante la Séptima Cumbre de las Américas. In: Mujeres afro. [S. l.], 2015. Disponível em: http://www.mujeresafro.org/publicaciones/presentaciones/. Acesso em: 18 jul. 2021


SANTOS, Lays Gonçalves et al. As relações de trabalho no capitalismo contemporâneo: a inserção da mulher negra no mercado. Humanidades em Perspectivas, v. 7, n. 3, 2019.


TOKITA, Márcia Figueiredo. Mulheres negras. Anais do V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina, v. 10, 2013.



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